Dezenas eram exploradas sexualmente no interior de SP; aqui, elas lembram os dias de terror e descrevem como vivem a rara oportunidade da segunda chance
(Cláudia, 28/06/2019 – acesse no site de origem)
Há duas maneiras de contar a história de Juliana* e Letícia* – começando pelo presente ou pelo passado. Se for pelo presente, você vai conhecer duas mulheres de pouco mais de 20 anos que madrugam todos os dias para cruzar São Paulo em busca dos seus sonhos; hoje elas podem sonhar.
Contratadas por uma multinacional de moda com mais de 200 lojas espalhadas pelo Brasil, comemoraram, juntas, algo que consideravam impossível – o emprego com carteira assinada. A velha máxima de que uma oportunidade puxa outra se mostrou verdadeira para Juliana, recém-ingressa em uma faculdade privada de administração – caminho também almejado pela colega. Quem as vê sorrindo, com vestido colorido em um domingo de folga, não imagina o sofrimento, a violência física e emocional e as violações de direitos humanos impostos a cada uma delas há bem pouco tempo. Agressões essas causadas pela família, pela sociedade e pelos patrões.
O passado foi manchete em agosto de 2018: “Mulheres vítimas de tráfico de pessoas são resgatadas de exploração sexual em Franca”. A cidade, a 390 quilômetros de São Paulo, é berço da indústria calçadista. “Eu era uma escrava”, diz Juliana, libertada na Operação Fada Madrinha. A notícia se repetiria em março deste ano, em Ribeirão Preto, no interior paulista, durante a Operação Cinderela, que envolveu o Ministério Público, a Polícia Federal, o Ministério Público do Trabalho e auditores da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério da Economia, resgatando dezenas de vítimas, entre elas Mariana* e Fernanda*.
Desta vez, além da acusação de exploração sexual, somou-se a de trabalho análogo ao de escravo. Foi o primeiro caso do grupo móvel de auditores fiscais do trabalho escravo de São Paulo, ligado ao Ministério da Economia, a estabelecer o endividamento no trabalho, entre outras violações, como forma de obrigar as jovens a se prostituir.
Ouvir a tormenta que marcou a trajetória de cada uma é como escutar a mesma música, com acordes dramáticos, repetidas vezes. Canção esta que se repete na vida de mais de 90% das mulheres trans, segundo organizações não governamentais. Não há dados oficiais. As quatro resgatadas e retratadas aqui foram expulsas de casa pelos pais e irmãos na adolescência ou após a morte da mãe. A mesma família que, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, deveria acolhê-las. “Se minha mãe estivesse viva, você não estaria conversando comigo agora, porque a minha história nunca seria esta”, diz Letícia.
O relatório sobre tráfico de pessoas do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, de 2016, mostra que os casos atingiram número recorde em 13 anos. “A vasta maioria das vítimas de tráfico para exploração sexual e 35% das traficadas para trabalho forçado são do sexo feminino”, escreveu Yury Fedotov, o diretor da área, no prefácio do documento.
Tráfico de pessoas, segundo o Protocolo de Palermo (2003), do qual o Brasil é signatário, é o “recrutamento, transporte, abrigo ou recebimento de pessoas por meio de ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção, de rapto, de fraude, de engano, do abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade ou de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sobre outra pessoa, para o propósito de exploração sexual”.
O chamado para se prostituir não chega rapidamente. A vítima ideal precisa ter convicção de que nunca terá uma vida como outras jovens, com família, escola e amigos. Juliana afirma ter sido jogada de um carro aos 16 anos, depois de ser mantida refém sob a mira de um revólver por horas. Até o túmulo o agressor tinha escolhido, um canavial. Pensou que morreria como a irmã, a facadas, por ser trans.
Todas as mulheres entrevistadas aqui afirmam ter tentado, sem sucesso, vagas de emprego antes de ir para as ruas, mas eram recusadas por não ser o perfil da empresa. A exclusão do mercado de trabalho contribui para a prostituição, como mostrou um relatório da então Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, hoje Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. “Passamos esse tempo todo acreditando que não temos potencial, que não nos querem trabalhando na loja do shopping, mas na rua a gente serve”, diz Fernanda, que raramente se expressa.
A exploração parece roubar das mulheres a capacidade de reagir. “É mais fácil rotular, chamar de prostituta e reproduzir o preconceito por desconhecimento do que tentar descobrir a capacidade de cada uma dessas meninas”, afirma a assistente social Disanira Maia Peria, do interior de São Paulo.
O sonho custa caro
“Eles vendem um mundo que não existe”, lembra Juliana. O marketing dos criminosos, somado à vulnerabilidade das garotas, torna a proposta dos aliciadores irrecusável. Eles oferecem o sonho que parece impossível, com direito a casa, uma rede que funciona como família e uma vida sem humilhações. Para quem não tem nada – nem dinheiro para comer – e vive nas ruas desprotegida, esse lar é tentador. Com passagens pagas pelos donos das casas (apenas o começo de uma série de dívidas às quais os criminosos as submetem), elas saem de todos os cantos do país rumo a regiões prósperas, como Franca e Ribeirão Preto. O pesadelo começa em hospedagens sujas, sem geladeira e até sem água na torneira.
A prostituição é tratada como um trabalho temporário e um caminho para alcançar o ideal de corpo perfeito. “A mulher trans deseja ser feminina e bonita para se tornar reconhecida socialmente. Isso porque as pessoas acabam desmerecendo, acusando ou moralizando a construção do corpo delas. Equivale, para elas, à imagem de pessoa bem-sucedida que muitos têm. É uma expectativa bastante cruel”, afirma o psicólogo Aureliano Lopes, do Laboratório Integrado em Diversidade Sexual e de Gênero, Políticas e Direitos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Mais uma vez, em troca de valorização, é exigido das mulheres um padrão de beleza, que, no caso desse grupo, tem ainda outro fator de importância, pois muitas vezes as protege da violência. “Na rua, a mulher trans é apontada como homem, e aí ela corre mais riscos.”
Juliana chamava a cafetina de madrinha. Essa relação familiar é comum, explicam os especialistas. Mesmo exploradas, as mulheres se sentem protegidas por essas pessoas. Já a madrinha a tachava de traveco porque Juliana não tinha seios fartos, quadris demarcados, cabelos longos, nariz fino e lábios grossos – atributos relacionados à mulher padrão.
Em Ribeirão Preto, a regra diz que as denominadas travecos não podem se prostituir no mesmo local que as trans, como se ambas não fossem mulheres. Para esse grupo sobram os piores pontos e clientes. A pressão não é por preconceito. Como as cafetinas lucram diretamente com os procedimentos estéticos, sejam eles cirúrgicos ou não, dão os melhores lugares nas ruas às que já fizeram intervenções. “Entretanto, a rede prefere recrutar quem ainda não passou pela transformação, porque ela vai querer mudar, gastar. E a dona da casa vai lucrar. Quando as modificações terminam, as trans podem ser enviadas para fora do país, e aí abre-se uma nova vaga”, afirma André Roston, auditor fiscal do trabalho.
A aplicação clandestina de silicone industrial é feita pelas bombadeiras, que, às vezes, são as próprias cafetinas. Elas injetam a substância com seringas utilizadas em tratamentos de cavalos. Mulheres que receberam o silicone contam que o líquido entra no corpo rasgando caminhos. O litro custa, em média, 50 reais, mas pagam 1,5 mil reais por ele, e o lucro é dividido entre a cafetina e a bombadeira.
Por se tratar de um procedimento irregular, o silicone industrial pode circular e se acumular em outras regiões do corpo; por exemplo, nos pés. Para retardar a descida, a pessoa precisa obrigatoriamente ficar imóvel. Se a aplicação foi nas nádegas, ela passará ao menos 20 dias na mesma posição – ali vai dormir, acordar, comer e fazer as necessidades. Como o produto queima a pele, as jovens tapam o buraco deixado pela seringa com supercola e, depois, fazem uma tatuagem para esconder a marca.
A cafetina também cobra uma taxa sobre cada cirurgia plástica. O valor pode ser até 2 mil reais a mais do que o total do procedimento. E não há nenhuma garantia na fase de cuidados. Uma jovem recém-operada discutiu com a cafetina e foi expulsa da casa com pus nos pontos. O financiamento inclui, ainda, outros procedimentos estéticos, como dente de porcelana e depilação a laser. Dois médicos são investigados por exercício irregular da profissão. Além de beneficiarem as cafetinas, eles reutilizariam próteses de silicone nas mulheres trans, entre outras acusações.
Para que as jovens sigam endividadas e, assim, obrigadas a trabalhar aos sábados, das 18 horas às 6 da manhã, há outras cobranças. A mensalidade na casa em Franca – um quarto sujo dividido por quatro pessoas – custava às entrevistadas resgatadas 4,5 mil reais por mês. Em Ribeirão Preto, o valor era de 50 reais por dia, mas havia uma segunda taxa, de 70 reais, supostamente uma poupança para futuras cirurgias.
“Quem não quitava a diária à noite não podia dormir ali”, afirma a procuradora Sabrina Menegária, do Ministério Público Federal. Depois que amanhecia, era obrigada pela cafetina a voltar para a rua com salto alto e maquiada até juntar o suficiente para pagar a diária. Outra represália é o castigo físico. “Eu nunca tinha visto uma pessoa apanhar até aquele dia em que a menina não pagou. Bateram para machucar, deixar marca. Chutavam e davam muitos socos”, lembra Mariana. “Quem ficava devendo era ameaçada. Diziam que jogariam a gente nua na rua”, completa.
Se as jovens quebrassem algo em casa ou desrespeitassem alguma regra, pagavam uma taxa a partir de 100 reais. A cafetina revendia para elas peças compradas na cidade por até cinco vezes o valor. Caso comprassem roupas e sapatos em outro lugar, eram taxadas também. Se uma garota não tinha dívida, a cafetina criava uma exigência, como uma peruca nova de 2 mil reais. “O tráfico de pessoas movimenta tanto ou mais dinheiro do que o de drogas aqui e no mundo”, afirma Stella Scampini, procuradora regional da República.
A esburacada e mal iluminada Avenida Brasil é um dos pontos de prostituição de Ribeirão Preto. De noite e de dia, veem-se mulheres com roupas justas, cabelos longos e brincos brilhantes. Ciclistas, motoqueiros e até motoristas fazem a ronda dos pontos – não só para protegê-las mas para averiguar se estão trabalhando e quantos programas fazem. A informação é repassada para a cafetina, que confere e confisca o dinheiro sob o pretexto de depositar em um banco. As garotas que anotam os ganhos são malvistas pelos patrões.
Os olheiros são homens do Primeiro Comando da Capital, o PCC. Segundo as investigações, garantem segurança aos negócios em troca de distribuição de drogas. Por segurança entende-se agir como tribunal do crime. “Eles julgam e aplicam o castigo, que pode ser cortar o cabelo, uma referência feminina forte, ou arrancar próteses mamárias. Há relatos até de assassinatos”, afirma Luciana Maibashi Gebrim, delegada da Polícia Federal que investigou o caso.
“Eu não tinha forças para sair de lá. Sou sozinha no mundo. Se eu sumo, quem vai saber? O medo me prendia”, diz Mariana. As dívidas consumiam tudo. “Cheguei a fazer 9 mil reais em 46 dias. Mas é um dinheiro que vai fácil porque você gasta suprindo toda a infelicidade da noite anterior. Não tem família, não tem afeto. Você dorme e acorda com depressão.” Outras vítimas resgatadas afirmaram usar drogas para amenizar as dores e conseguir fazer programas consecutivos.
Em março deste ano, a Operação Cinderela pôs fim à agonia de Mariana. Seis pessoas foram presas e cinco seguem foragidas, acusadas de tráfico para fins de exploração sexual, trabalho escravo, organização criminosa e, no caso da bombadeira, exercício ilegal da medicina. Mariana e as colegas tinham acabado de chegar da rua. Eram 6h30. Apesar de todo o histórico de violações, algumas vítimas choraram quando souberam que a madrinha e outras cafetinas tinham sido presas. A mesma cena se repetiu em Ribeirão Preto.
“As mulheres são psicologicamente muito comprometidas com a empresa que as exploram. É uma rede de convencimento que gira em torno desse vínculo e temor criados. Há uma coação psicológica e moral para que permaneçam”, afirma Magno Riga, auditor do trabalho. Nenhuma conhecia seus direitos, assegurados por acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário e pela Constituição Federal – mostrados na cartilha Páginas Trans, publicada pela ONU no ano passado.
Além dos policiais e de outros profissionais, uma equipe multidisciplinar especializada em transexualidade, liderada por Valeria Rodrigues, 39 anos, fez o acolhimento das vítimas. “Nós somos mulheres e sabemos o que elas viveram. Isso gera uma relação de confiança”, diz ela, que também foi expulsa de casa na adolescência, recorreu à prostituição e saiu determinada a ajudar outras mulheres trans. Valeria criou o Instituto Nice, em São Paulo, e passou a acolher homens e mulheres trans e prestar a eles serviços como auxílio para alteração do nome social na certidão para aquele pelo qual se reconhecem, direito garantido a qualquer pessoa no ano passado pelo Supremo Tribunal Federal.
Mariana não faz mais programas para sobreviver. “Eu lembro da primeira vez. Entregar seu corpo machuca muito. Fui para um motel, fiz o que tinha que fazer e fiquei dentro do quarto horas chorando. Tomei cinco banhos acreditando que poderia me limpar. A gente vale menos do que um pedaço de carne”, revela, dando um longo suspiro. Na semana seguinte ao resgate, ela ainda acordava com medo. Depois, passou. “Todas as pessoas deveriam ter o direito a uma noite de sono tranquila em uma cama limpa. Fazia muito tempo que eu não sentia isso.”
O novo caminho mudou a relação de todas com o corpo. A busca pela perfeição também ficou no passado. Aprenderam a gostar da imagem refletida no espelho e a acreditar que podem, sim, mais. Como poetizou Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, agora elas carregam em si todos os sonhos do mundo.
Thais Lazzeri