Dos 87,5 mil casos registrados em 2024, 63% foram praticados por familiares
A realidade é indigesta. Crianças e adolescentes são as principais vítimas de estupro no país. E pior: correm perigo principalmente em casa.
Especialistas destacam que a violência sexual intrafamiliar tem raízes em uma cultura patriarcal, na qual os membros da família estão subordinados ao homem da casa e na ideia de que crianças e adolescentes são posse de seus familiares.
Dos quase 87,5 mil estupros registrados em 2024, 78% ocorreram contra vítimas de até 17 anos e 61% contra menores de 14 anos (o que caracteriza estupro de vulnerável). Deste último, 69% ocorreram nas residências. Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025, divulgado em julho.
“A violência sexual, assim como a violência doméstica de modo geral, está fortemente vinculada a relações de poder, como denunciaram as feministas desde os anos 1960”, explica Laura Lowenkron, antropóloga e professora associada do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
Não à toa, 85% das vítimas de estupro de vulnerável registrados no ano passado são meninas.
Assim como na edição passada, o anuário limita o autor do crime de estupro a “familiares” (63%) e “conhecidos” (29%) —imprecisão que a diretora presidente do Instituto Liberta, Luciana Temer, condiciona à falta de uniformização dos registros de ocorrência.
“O Brasil tem uma história colonial marcada por um modelo familiar autoritário, a família patriarcal, que conformou por muito tempo uma certa naturalização e valorização da autoridade masculina na família e na sociedade”, explica Lowenkron, que também é coordenadora do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM).
O estupro esteve sob o guarda-chuva dos crimes contra os costumes no Código Penal brasileiro até 2009, carregando uma ideia de que a violência sexual atingia não o indivíduo, mas a moralidade. Atualmente, está tipificado nos crimes contra a dignidade sexual.
Ainda que em proporção menor, a violência sexual intrafamiliar também não poupa meninos. Panorama do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) de agosto passado revelou que, de 2021 a 2023, meninos de até 19 anos foram mais vítimas de abuso sexual, por exemplo, do que de mortes intencionais.
O novo anuário observou que o número de registros de estupro de vulnerável contra meninos cresceu 11%, embora não seja possível precisar se isso significa um aumento no número de casos ou de denúncias.
O Estatuto da Criança e do Adolescente entende a violência sexual não só como conjunção carnal, mas também como “qualquer outro ato libidinoso”.