(Época, 06/08/2015) Quem compartilha colabora para uma das práticas mais vergonhosas do mundo digital: o pornô de vingança
O que você faz em 24 horas? Posso descrever minha rotina: eu acordo, tomo um café, vou para a faculdade, almoço. Depois, venho para o trabalho. À noite, ainda dá tempo de jantar com alguns amigos antes de voltar para casa, assistir a uma série na TV e, finalmente, dormir. Agora, pense no que pode acontecer, nesse mesmo período, com um vídeo íntimo de sexo explícito publicado na internet sem o consentimento de um dos envolvidos. Quantas pessoas podem assisti-lo, comentá-lo e compartilhá-lo em um único dia? Pois é. Mesmo assim, 24 horas é o prazo dado às redes sociais para a remoção desse tipo de conteúdo depois que um usuário o denuncia.
Daí o estrago já está feito. O vídeo é replicado por e-mails, sites hospedados fora do Brasil e difíceis de ser rastreados e entra em grupos de WhatsApp, se multiplicando como um vírus. Em poucos minutos, imagens íntimas de uma garota no extremo sul do país chegam a computadores e smartphones de seus colegas de trabalho e de gente desconhecida no Amazonas, Mato Grosso e Pará. Para a vítima – em quase todos os casos mulheres – o desespero está apenas no início. O chamado pornô de vingança (tradução do termo em inglês “Revange porn”) é uma peste que assola o Brasil. Para piorar: infelizmente, pouca gente é punida por isso.
O número de vítimas de vingança pornô registradas no canal de ajuda da SaferNet –organização de defesa de direitos humanos na internet – aumentou nos últimos anos. O avanço no Brasil chegou a 85% de 2013 para 2014, quando 224 mulheres que tiveram fotos ou vídeos íntimos divulgados buscaram orientação na Safernet. Lembrando que o número ainda é baixo, já que boa parte das pessoas prefere não expor esse tipo de problema a autoridades. Um colega da revista ÉPOCA disse que recebe, nas dezenas de grupos de WhatsApp que participa, dois ou três casos de vazamentos de vídeos íntimos por semana.
A culpa também é de quem compartilha
“Ah, mas sempre tem aquela garota que se deixou ser filmada”, alguns dirão. “Ela fez isso para aparecer…”. Antes que o apedrejamento virtual comece, é preciso esclarecer uma coisa: não é crime gravar uma farrinha de final de semana com o namorado, o amigo ou o parceiro-da-noite. Nem mandar fotos – os famosos nudes– para o parceiro. Essa prática, aliás, ganhou até nome: sexting(adaptação do termo em inglês “texting”, o ato de enviar mensagens de texto). “Mas se ela liberou, tem que aguentar as consequências…”. Não é bem assim: o artigo 7º do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965) afirma que é direito do usuário a “inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Você, principalmente se for homem, já deve ter recebido uma mensagem com um vídeo de uma mulher fazendo sexo e logo depois outro link com o perfil dela no Facebook, certo? Se você o compartilhou, pardon my French, mas você é um idiota. Um amigo outro dia perguntou: mas por que só mulheres são vítimas desse crime? Para a advogada Cristina Sleiman, especializada em direito digital, a resposta é clara: “Para o homem, isso não é vingança. É algo positivo: ele é visto como o bom. Já as mulheres ficam ‘mal faladas'”, diz. Segundo Cristina, há registros de exposição masculina em casos de traição. Porém, a culpa recai – mais uma vez – sobre a mulher com quem o companheiro foi flagrado.
Em entrevista à revista Marie Claire, o então deputado e hoje senador Romário Faria (PSB-RJ), criador de um projeto de lei que criminaliza o pornô de vingança, afirmou: “Nossa sociedade costuma julgar as mulheres. É como se o sexo ferisse a honra delas”. De fato: os principais comentários em torno da vítima – sim, a menina que foi exposta nesses vídeos é vítima – são condenatórios. Muitas vezes extrapolam as fronteiras do mundo virtual, com consequências irreparáveis.
Alguém pode se matar por sua causa
Um caso conhecido é de Amanda Todd, no Canadá. A adolescente de 16 anos entrou num chat com amigos e desconhecidos. Um deles a convenceu a exibir os seios na webcam. Ela aceitou. Um ano mais tarde, Amanda passou a receber ameaças do rapaz no Facebook: “se você não me mostrar de novo, vou mostrar seus peitos para todo mundo”. Ela não aceitou a chantagem e a imagem passou a circular no bairro, na escola e na cidade em que ela morava. Ela se mudou com a família inúmeras vezes depois do caso – e o rapaz sempre a encontrava. Ele criou páginas no Facebook para ela e usava a foto de seus seios em seu perfil. Amanda teve surtos de pânico e ansiedade, além de perder todos os amigos. Antes de se enforcar em seu quarto, em 2012, publicou um vídeo no YouTube explicando a sua versão da história.
Não precisamos ir tão longe: no Brasil, o caso de Júlia Rebeca, uma jovem de 17 anos do Piauí, também teve o mesmo desfecho trágico. A menina de Parnaíba, litoral do estado, apareceu com outras duas pessoas em um vídeo vazado nas redes sociais. Assim como Amanda, Júlia se despediu antes de cometer suicídio: “É daqui a pouco que tudo acaba”, postou. Algumas horas depois, foi encontrada pela tia com o fio da chapinha enrolado no pescoço. “Existe uma dificuldade em denunciar porque a vítima teme retaliação por parte de quem vazou o vídeo”, afirma o psicólogo Rodrigo Nejm, diretor de Educação da SaferNet Brasil.
Fora a retaliação de quem vazou o vídeo, essas meninas levam em consideração a reação de todos nós. Quanto mais compartilhamos vídeos assim, mais a vida delas se torna um inferno. Imagine compartilhar o vídeo de alguém que resolve cometer suicídio depois da repercussão? Deve ser uma sensação ruim, né? É melhor evitar.
“Não sabemos fazer investigação digital”
Com o crescente número de casos de pornô de vingança no Brasil e no mundo, empresas de tecnologia, como Google e Facebook, têm sido cooperativos com a justiça, segundo o promotor Thiago Pierobom, coordenador do Núcleo de Gênero Pró-Mulher do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. O jurista lembra que essas empresas têm cumprido a norma que obriga a retirada do conteúdo ofensivo em até 24 horas, mesmo se não houver decisão judicial. Apesar de todo avanço da tecnologia de reconhecimento de imagem, ainda não há ferramentas eficazes para barrar o compartilhamento de pornô de vingança – pelo menos, é o que as companhias alegam. Segundo o artigo 21º do Marco Civil da Internet, a própria vítima pode comunicar os sites sobre a publicação de um arquivo vazado. “A culpa é sempre de quem vaza e não de quem escolheu compartilhar sua intimidade numa relação de confiança. Isso não é só culpa, aliás, é crime”, afirma Nejm.
O problema, além das intermináveis 24 horas, é a dificuldade em rastrear a origem dos vídeos. O WhatsApp, que pertence ao Facebook, tem resistido ao rastreamento e identificação de usuários responsáveis por repassar os vídeos e imagens íntimas, segundo o promotor. “Eles alegam que são apensas um veículo de transmissão. A informação fica no celular do usuário”, afirma Pierobom. O promotor Frederico Ceroy, coordenador da Comissão de Direito Digital do MP-DFT, explica que só é possível punir o responsável pelo vazamento após busca e apreensão do aparelho. “Daí costuma ser tarde demais. Ainda não sabemos fazer investigação digital”, diz.
O que fazer para tentar reduzir casos de pornô de vingança? Para Rodrigo Nejm, é preciso conscientizar a audiência que consome esse tipo de conteúdo. A culpa de quem abre e compartilha vídeos íntimos é a mesma daquele que grava e publica nas redes sociais. “Existem sites pornográficos especializados em conteúdo vazado. Há aquele prazer em ver o que não era para ser visto, em invadir a privacidade do outro”, afirma. O diretor da SaferNet também explica que a impunidade favorece os criminosos. “Falta uma ação mais consistente do judiciário, que penalize as pessoas que cometem esse tipo de violência. Precisamos de um efeito pedagógico sobre a sociedade”, afirma.
Segundo Ceroy, não existe uma tipificação específica para o vazamento de vídeos íntimos com maiores de idade. Tenta-se encaixar nos crimes de injúria e difamação, mas dificilmente a pessoa que ser condenado por isso. “Se você começa a vender a ideia de que é possível errar na internet e que a justiça vai e conserta, a gente vai criar uma geração iludida”, diz Ceroy.
Na era da internet, o tempo é relativo: 24 horas, dois minutos, um segundo. Um print da imagem de Amanda Todd foi o suficiente para que a adolescente se suicidasse um ano depois. O tempo em que essas informações circulam pela rede pouco importa: o que está em jogo é a naturalização da sexualidade feminina e a penalização de pessoas mal intencionados e ex-parceiros incapazes de superar um relacionamento. Você pode ou não participar dessa idiotice. Se não quiser, é só não compartilhar.
Acesse no site de origem: Você compartilha vídeos íntimos de outras pessoas? Você é um idiota…, por Harumi Visconti (Época, 06/08/2015)