Ao dizer que a vida é inviolável na fase embrionária, PEC termina por proibir qualquer possibilidade de interrupção de gravidez, mesmo nos casos em que a lei já autoriza
(O Globo, 16/09/2017 – acesse no site de origem)
O Brasil tem o pelourinho na alma. Esta frase, da pesquisadora Sonia Correa, chama atenção para as ideias e práticas de punição, violência e tortura tidas como métodos de controle e dominação de determinados segmentos populacionais. Não falo aqui de milhões de negros escravizados e seus descendentes, relegados às margens do país e expostos a toda sorte de violências. Destaco as ameaças contra as mulheres brasileiras de todas as raças, quando olhamos com atenção o conjunto de propostas que corre hoje no Congresso Nacional.
Durante as últimas semanas, acompanhamos o avanço na discussão sobre a proposta de emenda à Constituição (PEC) 181/2015, que deveria trazer benefícios importantes para a saúde reprodutiva das mulheres. Ela busca ampliar o período de licença-maternidade em casos de partos prematuros, o que tem reflexos positivos também para a saúde dos bebês.
O parecer do relator da comissão especial que discute a PEC, no entanto, traz uma perigosa armadilha escondida entre as boas intenções: uma proposta que visa a alterar os artigos 1º e 5º da Constituição, estendendo até o momento da concepção a ideia de inviolabilidade da vida. E, com isso, estender ao embrião a mesma proteção de que goza um recém-nascido. Ao dizer que a vida é inviolável na fase embrionária, na prática, esta manobra termina por proibir terminantemente qualquer possibilidade de interrupção de gravidez, mesmo nos casos em que a lei já autoriza: quando a gestação é resultado de um estupro; quando o feto em gestação não tem nenhuma possibilidade de sobrevida após o parto. E mesmo quando a gestação representa risco à saúde ou à vida da mulher.
No momento em que assistimos ao Chile, país de tradição conservadora e religiosa, dar um passo à frente na garantia do direito das mulheres ao acesso ao aborto legal em caso de estupro, risco para a mãe ou anencefalia, esta proposta em tramitação avançada no Congresso tenta retroceder a legislação para padrões do início do século passado.
Em praticamente todas as famílias brasileiras, alguma mulher já fez aborto, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto 2016, realizada pela Anis – Instituto de Bioética. Tenha sido ele clandestino ou nos casos ainda permitidos pela Constituição, pelo menos uma mulher que você conhece já buscou esta saída para uma gravidez não desejada ou planejada.
A manobra de inserir o Cavalo de Troia nesta proposta é uma forma de empurrar útero adentro a implantação do Estatuto do Nascituro, que acaba por estabelecer uma hierarquia de importância de certas vidas sobre outras, instituindo o embrião como entidade jurídica que tem mais importância do que a mulher que o gesta. Uma proposta assim vai aumentar ainda mais a vulnerabilidade de meninas e mulheres, num país onde a cada 11 minutos uma mulher é estuprada, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Isso é inaceitável do ponto de vista da legislação nacional e internacional de direitos humanos.
O resultado de uma proposta como essa para uma jovem democracia como a nossa é muito sério. Se o Congresso aprovar esta proposta, passa uma mensagem forte à sociedade de que as mulheres devem ser punidas, maltratadas, humilhadas e criminalizadas por buscar ajuda para tomar uma das decisões mais difíceis e importantes para suas vidas.
É fundamental lembrar que, em 2011, mais da metade dos casos de estupro no país, cerca de 250 mil, foi cometida contra mulheres e meninas negras, segundo dados do Ministério da Saúde/Sinan. Em 70% desses casos, eram crianças e adolescentes. Negar a elas o direito de interromper uma gravidez resultante de violência é, na verdade, prolongá-la. Trata-se de tratamento cruel e desumano, de tortura. E é inaceitável.
Nenhuma mulher deve ser criminalizada, detida, acusada, processada ou condenada por realizar ou buscar realizar um aborto. No entanto, a cada dois dias uma morre por fazer aborto no Brasil, segundo a Organização Mundial de Saúde, principalmente por causa da precariedade e das condições insalubres geradas pela clandestinidade e criminalização.
Quando se propõe a negar o acesso ao aborto nos casos em que hoje é permitido, a proposta legislativa atentará contra os direitos individuais, a autonomia sobre o próprio corpo e sobre o direito de decidir da mulher. É importante deixar claro: a mesma legislação que pune a mulher que deseja abortar gera violência e violação de direitos para todas. Se não conseguimos avançar na garantia dos direitos já conquistados, é correto propor como saída o retrocesso?
O Congresso tem por função constitucional fazer avançar os direitos e a consolidação da democracia brasileira. É isso que esperamos e de que necessitamos. Precisamos dizer ao Parlamento que direitos não se liquidam, não retrocedem, se expandem. Precisamos garantir e reafirmar: nenhum direito a menos. É pela vida de todas as mulheres!
Jurema Werneck é diretora executiva da Anistia Internacional Brasil