O tema da responsabilidade social na comunicação das marcas deve dominar o festival internacional de publicidade Cannes Lions, o principal evento anual da indústria, que acontece nesta semana na Riviera Francesa.
(Folha de S.Paulo, 17/06/2017 – acesse no site de origem)
Pauta de palestras e debates, ações afirmativas por igualdade de gênero e causas sociais deverão influenciar até mesmo o julgamento dos trabalhos publicitários mais criativos que receberão os cobiçados prêmios do festival.
Pela primeira vez, os jurados receberam orientação formal contra a objetificação de gêneros. A organização pede aos jurados que “considerem se um trabalho objetifica um gênero” e “levem isso em conta ao votar nos trabalhos”.
A intenção é evitar deslizes como o ocorrido no ano passado, quando o festival foi criticado por premiar uma campanha desenvolvida pela agência brasileira AlmapBBDO para a Aspirina, acusada nas redes sociais de ser machista e incentivar a chamada “pornografia da vingança”.
A propaganda do remédio contra dor de cabeça incluía a frase “Calma amor, não estou filmando isso.mov”, referência a atos sexuais gravados e divulgados sem consentimento de uma das partes.
A pedido do cliente, a farmacêutica Bayer, a campanha teve sua inscrição cancelada e a agência devolveu o prêmio recebido, o Leão de bronze na categoria outdoor.
Desta vez, a estrela do festival deverá ser o pastor americano Jesse Jackson, ativista dos direitos humanos, convidado a falar sobre a necessidade de as marcas participarem da construção de uma sociedade mais inclusiva.
Em outro painel, o presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, vencedor do Nobel, vai discutir as lições do acordo de paz com a guerrilha colombiana com o chefão de uma grande agência de relações públicas, Jack Leslie, da Weber Shandwick. “Promover a paz é o briefing mais difícil”, afirma o anúncio da palestra.
Maurice Lévy, do grupo Publicis, receberá para um bate papo a diretora-gerente do FMI (Fundo Monetário Internacional), Christine Lagarde. Assunto: “A criatividade é capaz de mudar o mundo?”
Gal Barradas, co-presidente da agência BETC São Paulo, diz que a recomendação do júri contra a objetificação de gênero resulta de um processo iniciado há cinco anos, quando o ex-presidente dos EUA Bill Clinton fez uma palestra em Cannes e convidou a indústria a usar a criatividade para impactar a sociedade.
“O festival bebeu muito daquela palestra e a partir dali começaram a valorizar campanhas que falam de sustentabilidade e diversidade”, diz.
O festival lançou um programa para estimular a presença de mulheres nos departamentos de criação das agências -tido como reduto masculino em todo o mundo.
O programa é voltado para profissionais em meio de carreira e levará a Cannes neste ano 15 publicitárias, que participarão de workshops e atuarão como mentoras de outros profissionais. Entre elas, a brasileira Deborah Vasques Soares, redatora sênior da Lew’Lara\TBWA.
Uma criação da BETC São Paulo tem boas chances de ser premiada por ir de encontro às preocupações dos organizadores do festival -um aplicativo de celular que calcula o número de vezes em que uma mulher é interrompida por um homem numa reunião, o Women Interrupted.
O aplicativo foi criado por iniciativa própria da agência, sem envolvimento de nenhum cliente nem veiculação na mídia. Com sede em Paris, a BETC é conhecida pelo ativismo político e social -todas as filiais são co-presididas por uma mulher e um homem.
“Cannes não é um lugar para descobrir as novas tendências, mas mostra o que se consolidou na indústria”, diz Barradas. “Essa questão do apoio à diversidade atingiu um ponto de maturidade.”
O engajamento da indústria também segue uma lógica de mercado. “O poder de decisão de consumo no mundo está na mão das mulheres”, diz. “Além disso, um ambiente de trabalho mais diverso e justo é mais criativo e impacta no resultado dos negócios.”
“As marcas não conversam mais só com clientes e colaboradores”, diz o presidente da Dentsu, Mario D’Andrea, único brasileiro a presidir um júri neste ano, na categoria Rádio. “Elas têm que se preocupar em como são percebidas pela sociedade.”
Mariana Barbosa