(O Estado de S. Paulo, 22/08/2016) Mesmo com o crescimento do número de casos que vieram a público, especialistas apontam que a grande maioria dos incidentes de assédio sexual no trabalho ainda não é denunciada
Em 1991, uma professora de Direito chamada Anita Hill trouxe a questão do assédio sexual para a consciência pública quando acusou seu antigo chefe, o candidato ao Supremo Tribunal, Clarence Thomas, de ter repetidamente lhe feito propostas lascivas.
Mas o episódio gerou mensagens dúbias, segundo muitos especialistas em discriminação. Apesar de ter aumentado a consciência sobre comportamentos corrosivos no local de trabalho, a intensa reação contra Anita Hill, até mesmo de membros do senado americano, passou a ideia de que as mulheres precisam encarar grandes obstáculos quando lidam com esses abusos. (Thomas negou as acusações.)
Quase 25 anos mais tarde, depois de uma série de alegações de assédio sexual que levaram a um pedido de demissão de Roger Ailes, antigo presidente da Fox News, e a uma cascata de acusações de agressão sexual contra o comediante Bill Cosby, alguns especialistas acreditam que podemos estar nos aproximando de mais um momento parecido com o do caso Anita Hill.
As histórias de Ailes e Cosby, afirmam eles, poderiam ter influência entre as mulheres no mercado de trabalho não apenas pelo poder intrínseco desses exemplos, mas porque acontecem em um momento em que elas estão ficando mais poderosas em sua luta pela igualdade. E quando a assertividade feminina produz resultados dramáticos como a demissão de Ailes, pode inspirar mais mulheres a seguirem pelo menos caminho.
“Quando Anita Hill se insurgiu contra Clarence Thomas, ela não conseguiu nada e ele arrumou um cargo vitalício”, afirma Linda Hirshman, biógrafa do Supremo Tribunal que já foi professora de Estudos Femininos. “Se há algo que pode inspirar as mulheres a se manifestar contra uma ameaça real, esse seria a confluência perversa do paizão, Bill Cosby, com Roger Ailes, o homem mais assustador do mundo – o fato de que os dois estão se dando mal.”
Mesmo assim, defensores que lidam com os locais de trabalho advertem que uma sensação maior de poder e mesmo vitórias legais que chamam a atenção não necessariamente levam a um aumento significativo no número de mulheres que tomam medidas formais. Eles apontam para estudos que indicam que a grande maioria dos incidentes de assédio sexual no trabalho ainda não é denunciada.
“As mulheres podem se sentir qualificadas para vários empregos e não esperam sofrer discriminação, mas isso não se traduz em denúncias sobre abusos”, explica Chai Feldblum, integrante da Comissão de Oportunidades Iguais no Trabalho que, junto com uma colega, Victoria Lipnic, passou um ano produzindo um relatório sobre a questão. “A pesquisa mostra que, infelizmente, na maioria dos locais de trabalho não falar nada ainda é uma resposta razoável, porque as pessoas vão sofrer retaliações.”
O número de mulheres entrando com acusações de assédio sexual na Comissão de Oportunidades Iguais no Trabalho cresceu significativamente nos anos seguintes à denúncia de Anita Hill. Mas o efeito de seu testemunho sobre esse aumento foi um pouco prejudicado por uma lei de 1991 que deu às pessoas que alegavam discriminação no emprego o direito a um julgamento legal e permitiu compensações monetárias adicionais.
Casos amplamente divulgados parecem ter desempenhado um papel para incitar outras pessoas a fazer denúncias também em uma grande variedade de contextos mais específicos.
O premiado documentário de 2012 “A Guerra Invisível” jogou uma luz em um padrão crônico de abuso sexual nas forças armadas, incluindo o caso de Kori Cioca, que alega ter sido estuprada enquanto servia na guarda costeira e processou dois secretários de defesa por não conseguirem impedir que ela e outros funcionários fossem assediados. O filme foi muito visto por integrantes das forças armadas, mesmo nos níveis mais altos. Segundo estatísticas do Pentágono, relatos de assédio sexual pularam de cerca de 3.600 em 2012 para mais de 5.500 no ano seguinte. Houve cerca de 6.100 denúncias em 2015, (Um porta-voz do Pentágono afirmou que em 2012 as forças armadas haviam apenas começado a mudar a maneira de responder a denúncias de assédio sexual.)
A questão envolvendo Gretchen Carlson, antiga âncora da Fox que entrou com um processo de assédio sexual e retaliação contra Ailes em julho, parece estar tendo um efeito similar, começando com duas mulheres que violaram acordos de silêncio para descrever suas próprias experiências na emissora.
Em uma entrevista ao New York Times publicada dois dias depois de Ailes pedir demissão, Rudi Bakhtiar, que trabalhou na rede de televisão uma década atrás, disse que a Fox News a mandou embora depois que ela rejeitou os avanços de um colega e apresentou uma queixa interna. Ela explicou que se sentiu encorajada a contar sua história publicamente por causa do processo de Gretchen Carlson.
Os historiadores afirmam que há uma mudança na percepção feminina de seu próprio poder, como a crescente discussão sobre os méritos da assertividade no local de trabalho, resumida pelo livro “Faça Acontecer” da chefe de operações do Facebook, Sheryl Sandberg. Eles também notam uma mudança para formas mais assertivas de ativismo em anos recentes, incluindo o grupo End Rape on Campus (Fim do Estupro nos Campus), que ajuda sobreviventes a prestar queixas federais e encontra serviços legais e de saúde mental. Os especialistas dizem que esses movimentos têm sido alimentados por um nível cada vez maior de educação, poder econômico e conectividade, por meio das redes sociais, das mulheres.
Mas a mesma conectividade que pode oferecer apoio às vítimas também é capaz de trabalhar contra elas; os advogados de algumas das pessoas que fizeram queixas argumentam que os riscos de se falar a verdade aumentaram com o tempo. Há três décadas, teria sido muito difícil para um possível empregador descobrir um processo legal. Hoje, afirma Linda D. Friedman, importante advogada do trabalho com muitos casos contra empresas de Wall Street, a marca de pessoa “encrenqueira” pode seguir por toda a vida de quem faz uma denúncia.
“Qualquer pessoa de Recursos Humanos no país pode fazer uma pesquisa no Google e descobrir uma denúncia federal antes de decidir se contrata alguém”, conta ela.
Apesar de um caso bastante divulgado como o de Gretchen Carlson poder encorajar uma maior quantidade de pessoas que sofreram assédio a fazer denúncias, muitos defensores dizem que é mais possível que isso aconteça indiretamente, persuadindo primeiro os empregadores a cuidar com mais seriedade de reclamações de assédio e discriminação. Apenas quando a maioria dos funcionários acreditar que pode falar sem arriscar sua carreira, um desenvolvimento que muitos dos advogados duvidam que vá acontecer logo, eles terão possibilidade de fazer isso em números substancialmente maiores.
Ainda assim, se a consequência das acusações contra Cosby e Ailes for uma indicação, um número crescente de mulheres pode estar concluindo que agora é mais provável que a denúncia resulte em punições para o agressor do que para o acusador.
Anita Hill, que hoje é professora da Universidade Brandeis, está cautelosamente otimista, apesar de se preocupar com o fato de que os US$40 milhões que Ailes teria recebido para deixar a Fox News possam prejudicar a lição do caso.
“O fato de que a empresa está agora não apenas falando com as mulheres” que dizem que sofreram assédio, “mas também falando sobre a possibilidade de outras pessoas terem sido facilitadoras, é importante. Mulheres que sofreram assédio nos locais de trabalho talvez vejam essa evolução como um resultado possível”.
Noam Scheiber e Sydney Ember (The New York Times)
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