(Débora Prado/Agência Patrícia Galvão, 10/08/2016) Em artigo exclusivo, a especialista ressalta que a eficácia de uma lei não pode ser avaliada apenas por seu aspecto punitivo. Ex-secretária nacional adjunta de enfrentamento à violência contra as mulheres, a advogada Aline Yamamoto enumera as mudanças institucionais impulsionadas pela Lei Maria da Penha nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário nos últimos 10 anos e questiona: para onde queremos seguir?
No ano em que a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) completa 10 anos, muitas análises e perguntas são feitas. A primeira delas geralmente se refere à eficácia da lei: houve diminuição da violência doméstica e familiar contra as mulheres? Se a violência não tiver diminuído, a lei falhou?
No artigo produzido especialmente para a Agência Patrícia Galvão, Aline Yamamoto, ex-secretária nacional adjunta de enfrentamento à violência contra as mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres, analisa os legados e limites da lei sob diversos aspectos e afirma: “o dia a dia de quem convive com as diversas formas de violência que nos atingem enquanto mulheres não costuma ser animador, pois lidamos diariamente com vozes que nos querem calar. Mas refletir sobre os 10 últimos anos, por ocasião do aniversário da vigência da primeira lei brasileira a reconhecer a desigualdade baseada nos gêneros, nos permite ter a dimensão de que não continuamos no mesmo lugar”.
Advogada feminista, mestre em Criminologia e Execução Penal pela Universidade Autônoma de Barcelona e pós-graduada em Direitos Humanos das Mulheres pela Universidade do Chile, a especialista ressalta que a eficácia de uma lei não pode ser avaliada apenas por seu aspecto punitivo. “Nenhuma lei penal, por si só, é capaz de alterar uma cultura milenar de desigualdade e discriminação contra as mulheres, causa estruturante das diversas formas de violências que nos atingem cotidianamente. A proposta deste artigo é analisar os 10 anos da Lei Maria da Penha a partir da integralidade das ações e políticas públicas, já que esta é sua principal característica – motivo pelo qual, inclusive, foi considerada pelas Nações Unidas como uma das melhores leis para o enfrentamento à violência doméstica e familiar”, explica.
Entre os legados da Lei, Aline Yamamoto ressalta: o principal avanço que o Brasil alcançou com a sanção da Lei Maria da Penha foi respaldar a institucionalidade necessária para que as políticas para as mulheres se estruturassem. “Com o apoio na Lei e com o esforço de milhares de mulheres e também homens engajados em mudar um sistema reprodutor de violências, conquistamos políticas públicas e novos espaços de debate e, consequentemente, de disputa”, aponta.
Um indicador nesse sentido, explica Aline, é o crescimento no número de Organismos de Políticas para as Mulheres: “nos primeiros dez anos de existência da Secretaria de Políticas para as Mulheres foi elevado em mais de 4.000%: em 2003 eram 13 e em 2013 chegaram a 544 nos níveis municipal, estadual e distrital”, exemplifica.
Partindo desta premissa, o artigo avalia as mudanças institucionais impulsionadas pela Lei Maria da Penha nos poderes executivos, legislativo e judiciário e questiona: para onde queremos seguir?
“Muito antes e para além da violência, a luta é pela desconstrução de formas estruturantes de desigualdade na nossa sociedade, aquela baseada nos gêneros e raça. Enfrentar essa realidade exige um esforço diuturno”, responde, mostrando que muitos passos ainda precisam ser dados no caminho aberto pela Lei Maria da Penha e que, por isso mesmo, não se pode aceitar nenhum retrocesso.
Confira alguns trechos abaixo e baixe aqui artigo na íntegra em pdf:
Executivo: institucionalização das políticas para as mulheres
“Mais do que números exponenciais, os dados do crescimento dos Organismos de Políticas para as Mulheres são, na verdade, indicadores do quanto a SPM e o Pacto, mais especificamente, fortaleceram as políticas para as mulheres em todo o Brasil. Com o aumento do quantitativo desses OPMs houve maior visibilidade ao tema e maiores possibilidades de execução da política de enfrentamento à violência contra as mulheres, como a adoção de recursos orçamentários próprios, aumento da rede de serviços especializados, dos serviços ofertados, da qualidade desses e, consequentemente, do aumento da população atendida e sabedora de seus direitos. Essa capilaridade favoreceu uma maior conscientização política para o tema proposto, provocando a preocupação por parte de todos os entes e poderes federativos que, integrados e signatários do Pacto, contribuem com o fim de dirimir a violência contra as mulheres.”
Judiciário: perspectiva de gênero na pauta do Direito
“Os efeitos mais imediatos que se podem esperar de uma lei se dão no âmbito do sistema de justiça e também nesse aspecto a Lei Maria da Penha foi bastante ousada: não apenas recolocou o problema da violência doméstica e familiar contra as mulheres em outro patamar de importância – deixando claro que se trata de um grave problema social desde a perspectiva da desigualdade baseada no gênero, mas também forçou a criação de novas estruturas e procedimentos administrativos e judiciais, reposicionando o debate da violência contra as mulheres dentro e fora do sistema de justiça e contribuindo, inclusive, para que os atores do poder judiciário se vissem obrigados a desenvolver novas estratégias de atuação e buscassem atuar em parceria com outros órgãos.
Dentro do judiciário, a resposta que se dava a casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres partia de um sistema desenhado para lidar com crimes de menor potencial ofensivo, que eram os Juizados Especializados Cíveis e Criminais previstos da Lei 9.099/1995. Isso refletia a alta tolerância a esse tipo de violência, como se a Justiça não tivesse que se ocupar de um problema da vida íntima do casal. A mensagem da Lei foi dada no sentido de inverter essa lógica: tirar os casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres dessa instância judicial e determinar a criação de estruturas especializadas para processá-los e julgá-los. A Lei disse explicitamente que a violência contra as mulheres baseada no gênero é uma grave violação dos direitos humanos, com repercussão em vários âmbitos de suas vidas e afetando a sociedade como um todo. Caberia, portanto, à Justiça, criar os meios necessários para proteger as mulheres e punir os agressores.”
Legislativo: da previsão do direito para a efetivação prática em diferentes realidades
“O fato de no Brasil haver a previsão, no Código Penal, de outros crimes que afetam especialmente as mulheres, como estupro, assédio sexual, tráfico de pessoas, entre outros, não significa que estejamos cumprindo com o dever internacional de diligência e assegurando às mulheres o direito de viver uma vida sem violência. Para alterar um sistema que naturaliza e tolera a violência contra as mulheres é preciso muito mais que isso, como já apontou a Lei Maria da Penha.
É importante lembrarmos, ainda, que há formas recorrentes de violências contra as mulheres baseadas no gênero que sequer têm previsão legal, tais como a violência obstétrica (procedimentos ou atos em geral praticados por profissionais da saúde em mulheres gestantes, antes, durante ou após o parto, ou em casos de abortamento, em desrespeito a seus direitos, sua autonomia e capacidade de decidir sobre seu corpo e sexualidade), a violência política (atos praticados contra mulheres que tenha como objeto ou resultado diminuir, anular, impedir seus direitos políticos ou a participar de assuntos políticos e públicos em igualdade com os homens, que me muitos casos tornam-se mais evidentes à medida que as mulheres ampliam sua participação em espaços de decisão e poder), as diversas formas de violência institucional (praticadas por ação ou omissão de agentes do Estado, que no exercício de cargo ou função, reproduzem os estereótipos e discriminações de gênero), as violências promovidas por diferentes meios de comunicação, como redes sociais, dentre outras. E temos que ter em vista que neste conjunto de mulheres há sempre especificidades que precisam ser consideradas não só no momento de aplicar a lei, mas também ao elaborá-las. Diferenças de cor, raça e etnia, idade, origem, orientação sexual, identidade de gênero, dentre outras, podem requerer proteções diferenciadas e específicas.”
Para seguir refletindo
“Muito antes e para além da violência, a luta é pela desconstrução de formas estruturantes de desigualdade na nossa sociedade, aquela baseada nos gêneros e raça. Enfrentar essa realidade exige um esforço diuturno que ainda permanece oculto: precisamos avançar na divisão das tarefas de cuidado, na maior participação das mulheres em espaços de decisão e poder, na garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, na revisão do ensino e educação formal, com a inclusão de temas como discriminação de gênero e raça, na revisão das estruturas opressoras do sistema capitalista, na mudança das formas hierárquicas tão presentes nas nossas diversas relações humanas e muito, muito mais.
E para finalizar queria lembrar aqui um dos lemas da Agenda 2030 de desenvolvimento sustentável, acordada entre todos os estados membros das Nações Unidas, como recado central para todas(os) nós para os próximos anos: “não deixar ninguém para trás” (leave no one behind, em inglês), isto é, precisamos envidar esforços para alcançar aquelas(es) que historicamente têm ficado para trás na luta por direitos. Isso significa reconhecer que somos muitas mulheres, que as diversas formas de desigualdades se intercruzam e há aquelas que enfrentam maiores dificuldades e estão mais longe de ter sua dignidade humana reconhecida e respeitada. Não vamos deixar ninguém para trás!”
Aline Yamamoto é advogada feminista, mestre em Criminologia e Execução Penal pela Universidade Autônoma de Barcelona, pós-graduada em Direitos Humanos das Mulheres pela Universidade do Chile, ex-secretária nacional adjunta de enfrentamento à violência contra as mulheres 2015/2016 e integrante da União de Mulheres de São Paulo.
* Colaborou Ana Teresa Iamarino, ex-subsecretária de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres.
Acesse na íntegra em pdf: Avançamos, mas ainda é preciso mais para desconstruir as desigualdades de gênero e raça no Brasil, por Aline Yamamoto