(Revista Gama/UOL| 06/03/2022 | Por Debora Diniz)
Jamais esquecerei as multidões pelas ruas de Buenos Aires em 2018. Eram pessoas de todas as idades e origens em vigília pela votação do projeto para revisar a lei de aborto de 1921. Milhares de meninas e adolescentes ocupavam as ruas com o lenço verde no corpo. O lenço é um símbolo de ancestralidade na história política das mulheres na Argentina: nos anos 1970 foi usado pelas mães e avós da Praça de Maio, mulheres que desafiavam a ditadura militar em busca de seus filhos desaparecidos ou mortos. O lenço foi feito verde, transmudado na esperança de uma geração pelo direito ao aborto como uma dívida democrática de cidadania às mulheres, meninas e pessoas gestantes.
O aborto foi legalizado na Argentina em dezembro de 2020. A imagem das multidões nas ruas com a alegria da celebração percorreu o mundo confinado à casa pela pandemia de covid-19. O que celebravam as argentinas? A moral patriarcal se inquietava com a cena de alegria frente ao que os códigos penais descrevem como “crimes contra a vida” ou “crimes contra a pessoa”. É certo que a multidão celebrava a aprovação da lei de aborto, pois a clandestinidade do aborto mata, põe a vida de mulheres e meninas em risco, em particular daquelas mais pobres, migrantes, negras ou indígenas. Mas a celebração era para além da legalização aborto — era sobre como uma democracia laica protege o direito de cidadania das mulheres, meninas e outras pessoas com capacidade de gestar.