(Portal Geledés | 22/06/2022 | Por Maria Sylvia de Oliveira)
Eu relutei em escrever essas poucas linhas. Mais do que a indignação o ódio me dominava, mal consegui dormir, diante da violência, do racismo institucional que vitima meninas e mulheres negras. Precisava acalmar minha alma para escrever.
A notícia veiculada pelo grupo The Intercept Brasil[1] e repercutida nas redes sociais sobre a violência perpetrada por uma “juíza de direito” Joana Ribeiro Zimmer e a “promotora de justiça” do caso, Mirela Dutra Alberton, contra uma menina de 10 anos de idade, vítima de estupro e que foi levada ao Poder Judiciário para reivindicar um direito garantido pela legislação brasileira, desde 1940, o aborto legal.
Essa notícia não só me chocou, essa notícia me fez sentir ódio. Menina, negra de 10 anos de idade, violentada sexualmente, sendo revitimizada pelo Sistema de Justiça, pelas instituições do Estado que deveriam protegê-la a começar pelo Hospital Universitário, na cidade de Tijucas/SC, que negou à menina o direito de realizar um aborto legal, já que previsto no Código Penal brasileiro.
“Ela não tem noção do que ela está passando, vocês fazem esse monte de pergunta, mas ela nem sabe o que responder”[2]. (a mãe da menina de 10 anos, durante a audiência).
“A gente mantinha mais uma ou duas semanas apenas a tua barriga, …”[3] (a Douta Promotora de Justiça, durante a audiência)
Esta audiência é uma triste aula de desumanização de vítimas de violência, no caso, uma menina de 10 anos de idade, que sofreu violência sexual e sua mãe.
Sou formada em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e nas lições mais básicas de Direito Penal aprendemos que não se pune o aborto quando: necessário: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; ou, no caso de gravidez resultante de estupro se é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. Está na lei (art. 128, do Código Penal).
No áudio disponível na mídia, sobre a escabrosa audiência, ouvimos a “MM. Juíza” dizer à menina de apenas 10 anos de idade, já violentada, se ela entendia que estaria cometendo homicídio se abortasse o fruto da violência que sofreu. A certa altura na audiência a Douta Promotora diz: “A gente mantinha mais uma ou duas semanas apenas a tua barriga, porque, para ele ter a chance de sobreviver mais, ele precisa tomar os medicamentos para o pulmão se formar completamente”. Essa atitude da juíza e da promotora é criminosa, no mínimo o constrangimento ilegal (art. 146 do Código Penal), se não crime de tortura tipificado na lei 9455 de 1997, sendo que a pena é aumentada quando cometido contra criança e gestante, está na lei.
Toda a audiência é uma trilha de horror, a desumanização impingida à criança de 10 anos de idade, vítima de violência sexual é tamanha que em determinado momento a “MM. Juíza” trata a menina como uma simples reprodutora (não pude deixar de pensar no período colonial quando meninas e mulheres negras eram as reprodutoras de novos corpos a serem escravizados): “…Essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal”, para essa juíza a criança de 10 anos, vítima de estupro seria uma incubadora que aguentaria “mais um pouquinho” até que o fruto de um estupro nascesse e fosse indicado para adoção. O sofrimento físico e risco de vida da menina de apenas 10 anos de idade, o seu sofrimento psíquico e o sofrimento da família não são considerados pela juíza, completa falta de humanidade e humanismo.
Especialistas ouvidas e ouvidos em reportagens sobre o caso já se manifestaram sobre a atitude absolutamente reprovável da “MM. Juíza” e da “Douta Promotora de Justiça”, essa última que tem como função institucional: “velar pela observância da Constituição e das leis, e promover-lhes a execução”, art. 3º, inciso I da Lei Complementar 40 de 1981 e vale aqui ressaltar que não são poucas as legislações de proteção integral e que visam o melhor interesse da criança e seu pleno desenvolvimento desde a Constituição Federal, em seu art. 227, passando pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e os tratados e convenções internacionais de direitos humanos que tem força de Emenda Constitucional quando aprovados por nosso Congresso Nacional (art. 5, § 3º da Constituição Federal).
Estamos, novamente, diante de uma flagrante situação de violência institucional. O Estado, neste caso representado por membros do nosso Sistema de (in)Justiça, promove a violência, a tortura psicológica, promove injustiça contra uma menina de 10 anos de idade, vítima de estupro, afastando-a do convívio de sua mãe, entregando a menina para um abrigo e impedindo-a de exercer um direito legalmente previsto, o abortamento.
E, não me venham alegar questões morais e religiosas, pois a hipocrisia campeia nesta seara, já que a vida não tem qualquer valor neste país. É só olhar os dados disponibilizados em vários institutos de pesquisa e mesmo os oficiais, ou já esqueceram das propostas de ampliação da excludente de ilicitude para os agentes do estado, das chacinas que temos notícias, sob a alegação do combate às drogas, do genocídio de negros e indígenas.
O Estado brasileiro é signatário de todos os tratados e convenções de Direitos Humanos, incluídos aí os que preveem a proteção dos direitos de mulheres e meninas. Essa criança, abusada sexualmente, tem 10 anos de idade e não tem desenvolvimento físico e emocional para levar a gestação adiante, fato reconhecido, inclusive pela MM. Juíza Joana Ribeiro Zimmer e a Douta Promotora Mirela Dutra Alberton. Assistam o vídeo ele está disponível na internet.
Uma criança de 10 anos de idade, vítima de estupro corre risco de morrer em razão de uma gravidez fruto desta violência. E se fosse a sua filha?
Maria Sylvia de Oliveira
Advogada; Coord. de Políticas de Promoção de Igualdade de Gênero e Raça; Mestranda no PPG Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades – Diversitas (FFLCH/USP).
[2] idem
[3] ibidem