(Folha de S.Paulo) Treinado para resgatar seres para a vida, sou tomado pelo desalento quando observo a indiferença com que o mundo e as sociedades se postam frente à existência humana.
De acordo com a ONU, 1,1 bilhão de habitantes do planeta vivem em extrema pobreza (renda inferior a US$ 1 por dia) e 800 milhões vão dormir sem a garantia de dispor de um prato de comida no dia seguinte.
Essa tragédia não poupa o Brasil. Intitulada este ano a sexta economia do mundo pelo seu PIB, nossa nação ostenta o 84º lugar no ranking do desenvolvimento humano. É um índice mais piedoso que o PIB, já que agrega os valores de saúde e de instrução de um povo.
Ele reflete a brutal realidade da nossa sociedade, povoada por cerca de 40 milhões de pobres e miseráveis e onde o 1% mais rico tem a mesma renda que 50% da população.
Diante de estatísticas tão embaraçosas, as Nações Unidas propuseram, em 2001, o Projeto do Milênio, que estabeleceu oito metas para até 2015, como reduzir pela metade a fome e a miséria planetária.
De maneira emblemática, o projeto contemplou, como prioridade, medidas de valorização e de proteção à mulher. É fácil compreender.
Nos países subdesenvolvidos, as mulheres são responsáveis por 70% do trabalho que sustenta as famílias, colhem 80% dos alimentos e são provedoras quase exclusivas da assistência aos mais vulneráveis -crianças, doentes e idosos.
Ademais, dados da OMS mostram que as taxas de filhos escolarizados são 40% maiores quando a mãe é alfabetizada, em contraposição ao pai alfabetizado. Comprovam também que para cada ano de escolarização da mãe a mortalidade infantil fica nove em cada mil nascimentos menor.
Além disso, quando as despesas familiares são geradas e gerenciadas pela mulher e não pelo homem, os gastos para sustento dos filhos são 15 vezes menores -aos mulheres, concentrando os recursos nos filhos e não em outras atividades, são mais eficientes.
Contrastando com a relevância do seu papel nas sociedades mais pobres, as mulheres têm os seus direitos restringidos ou ignorados na maioria delas. Por isso, nos países subdesenvolvidos, cerca de 70% das pessoas iletradas são mulheres. Pais não enviam as filhas para a escola pelo receio de que elas sejam violentadas por colegas e… professores.
Ademais, 530 mil mulheres morrem a cada ano por falta de assistência e por complicações relacionadas com a maternidade. O que significa que enquanto nos países prósperos, o nascimento de um filho se transforma no dia mais feliz de uma mulher, nos países pobres esse momento pode ser o dia em que morre uma mulher.
Outro dado eloquente, que reflete a dimensão da violência imposta às mulheres, foi apresentado por Ana Carolina Soares e Laís Lobão. Existem no mundo entre 100 milhões e 140 milhões de mulheres submetidas à amputação genital e, a cada ano, 3 milhões de meninas correm o risco de passar por esse ritual.
Esses exemplos demonstram que eliminar as desigualdades de gênero é essencial para promover a prosperidade de uma nação.
Para tanto, é imprescindível que se conceda às mulheres os mesmo direitos desfrutados pelos homens no trabalho e na política, que se privilegie o seu acesso aos cuidados de saúde e à maternidade, que se reduza a sua vulnerabilidade à violência física, sexual e psicológica e que elas tenham autonomia para comandar a sua vida sexual e reprodutiva.
Enfim, que se conceda às mulheres o direito de participar das decisões maiores que afetam o seu destino. Não apenas para respeitar a dignidade humana, mas, principalmente, pois mulheres se confundem com a superação da miséria nos países pobres. E para que as pessoas do mundo, resgatadas da pobreza, possam se aproximar daquela aspiração que não tem contestadores: usufruir da existência com felicidade.
MIGUEL SROUGI, 65, médico, pós-graduado em urologia pela Harvard Medical School, é professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP e presidente do Conselho do Instituto Criança é Vida.
Leia em PDF: Mulheres e a superação da miséria, por Miguel Srougi (Folha de S.Paulo – 09/03/2012)