Diante da divulgação do Manual “Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento”, elaborado pelo Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas da Secretaria de Atenção Primária à Saúde, do Ministério da Saúde, cuja última versão afirma que “todo aborto é um crime”, o Núcleo de Gênero do Centro de Apoio Operacional Criminal (CAOCrim) e o Núcleo de Atendimento à Vítima de Violência e seus Familiares (NAVV) do Ministério Público do Estado de São Paulo divulgaram Nota de Posicionamento: aborto sentimental (ou humanitário ou ético), publicada no Boletim Criminal Comentado CAOCRIM nº 188, de junho de 2022.
A seguir, destacamos alguns trechos da Nota de Posicionamento do Núcleo de Gênero do CAOCrim e do NAVV do MPSP, que pode ser acessada na íntegra neste link.
“O Ministério da Saúde publicou em junho de 2022 a versão eletrônica da 1ª edição revisada do Manual “Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento”, editado pelo Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas da Secretaria de Atenção Primária à Saúde.
Segundo a apresentação do documento, a Secretaria fundamenta a edição do manual no seu papel de normatizador da atenção prestada à população, tendo por escopo contribuir com profissionais e serviços de saúde quanto “às abordagens atualizadas sobre acolhimento e atenção qualificada baseada nas melhores evidências científicas e nas estatísticas mais fidedignas em relação à temática, levando em conta a defesa das vidas materna e fetal e o respeito máximo à legislação vigente no País”.
Sem qualquer pretensão de abordar a temática que envolve a área médica no trato da questão, pretende-se, com esta nota, enunciar o posicionamento técnico do Ministério Público no âmbito de sua atuação criminal, a respeito de conceitos cuja observação lhe cabe enquanto instituição à qual a Constituição Federal incumbiu a titularidade da ação penal pública.
[…] Apesar da doutrina penal tradicional e já sedimentada sobre o tema reconhecer que tais figuras são três espécies de reconhecido “aborto legal”, o manual, documento da área da saúde, quer explicar juridicamente o seu significado negando tal nomenclatura, atribuindo-a de equivocada, e busca lhe dar novo alcance, ocupando-se de um papel que incumbe não ao Ministério da Saúde, mas a quem é titular da ação penal:
“Não existe aborto “legal” como é costumeiramente citado, inclusive em textos técnicos. O que existe é o aborto com excludente de ilicitude. Todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por risco materno. O acolhimento da pessoa em situação de aborto previsto em lei deve ser realizado por profissionais habilitados” (pág. 14 do Manual).
[…] Nota-se que o móvel do legislador não foi nada nobre. Muito se debate se o fato de o artigo 128 falar em não punir o aborto praticado por médico implica dizer que o aborto, mesmo nas hipóteses autorizadas, seria crime, deixando-se apenas de aplicar sanção; ou se o próprio crime restaria afastado. Limitando a análise apenas à redação, pode-se concluir sim que todo aborto é crime, sendo afastada a pena nos casos específicos apontados. No entanto, no âmbito da doutrina do Direito Penal, prevalece o entendimento de que a punibilidade integra o conceito de crime e, nessa perspectiva, o crime seria, de plano, afastado. Na prática, a discussão tem pouca relevância, pois, uma vez que a gravidez tem tempo limitado e, para fins de interrupção, a limitação temporal é mais restritiva ainda, seria impossível aguardar transcorrer todo um procedimento para apurar se houve crime, ou não (pág. 22/23 do Manual).
O Manual atenta que o tema tem aparente pouca relevância, mas busca, na realidade, reforçar o caráter penal da norma e incutir nas entrelinhas a persistência da conduta criminal que eventualmente legitime a adoção de providências intimidatórias e persecutórias à gestante.
Nesse passo, cabe ao Ministério Público, enquanto titular da ação penal, não apenas reforçar a doutrina aplicável ao tema, mas também ressaltar que a comunicação falsa de crime, a denunciação caluniosa, o abuso de autoridade e a violência institucional também são figurais penais relevantes e adequadas às condutas daqueles que deturparem a leitura e a interpretação jurídica da norma e conduzir à mulher cuja gravidez decorreu de violência sexual, ou diagnosticada nas situações em que o aborto é permitido por lei e pela ADPF 54 do STF, a um atendimento abusivo, intimidatório e revitimizante.
Por isso, destacamos o seguinte:
1 – A doutrina penal reconhece como lícita a conduta do aborto em determinadas situações, afastando-se a incidência da conduta no tipo penal. A essa figura atribui-se o termo de “aborto legal” pelo fato de o próprio legislador reconhecer como lícita a prática do fato. Nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt, “É uma forma diferente e especial de o legislador excluir a ilicitude de uma infração penal sem dizer que ‘não há crime’, como faz no art. 23 do mesmo diploma legal.”. No mesmo sentido, temos a lição de Mirabete.
2 – O aborto necessário (ou terapêutico) caracteriza caso de estado de necessidade, deixando o legislador consignada expressamente a possibilidade de o médico provocar a interrupção da gravidez se verificar tratar-se do único meio de salvar a vida da gestante. Não é necessário que o médico seja especialista na área de ginecologia-obstetrícia. Caso seja necessária a realização do aborto por pessoa sem a habilitação profissional do médico (parteira, farmacêutico etc.), apesar de o fato ser típico, estará o agente acobertado pela descriminante do estado de necessidade (art. 24), aplicando-se a mesma solução se a própria gestante pratica o aborto movida pelo espírito de salvar a própria vida. Aliás, entende a melhor doutrina que não há necessidade do consentimento da gestante para a realização do aborto. Basta que o profissional entenda ser indispensável fazê-lo. Desnecessário, ainda, autorização judicial.
3 – O aborto sentimental, ético ou humanitário é a figura doutrinária pela qual a conduta da interrupção da gravidez (aborto) está autorizada por lei quando resulta de estupro. Se, no tocante ao “aborto terapêutico”, é a preocupação de salvar a vida da gestante que informa o preceito, em relação ao inciso II o motivo consiste em que nada justificaria impor-se à vítima da violência, violada gravemente em sua dignidade sexual, uma maternidade que talvez lhe fosse odiosa, torturante, e sempre relembraria o triste acontecimento de sua vida. Explica Hungria: “Costuma-se chamá-lo aborto sentimental: nada justifica que se obrigue a mulher a aceitar uma maternidade odiosa, que dê vida a um ser que lhe recordará, perpetuamente, o horrível episódio da violência sofrida”.
Para a realização desse procedimento não se exige o registro do boletim de ocorrência ou qualquer espécie de autorização judicial, já que a lei, em nenhum momento, faz referência ao preenchimento desse requisito. Tampouco se exige, da mesma forma, eventual julgamento do processo-crime relativo ao estupro, pois, a essa altura, devido à demora, a criança já teria nascido. De rigor, no entanto, que se colha o consentimento da gestante ou, se incapaz, de seu representante legal ou, na impossibilidade, do suprimento judicial.
Os procedimentos dos serviços de saúde não equivalem aos procedimentos investigativos criminais, mas nem por isso afastam a exigência de providências formais. Os documentos necessários para o abortamento nos casos de violência sexual serão colhidos no hospital em que a interrupção da gravidez será realizada e a pessoa que opta pelo procedimento se responsabiliza pelos fatos narrados à equipe médica como verdadeiros: Termo de Relato Circunstanciado, Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e Termo de Responsabilidade.
[…] 4 – O aborto eugênico, ou engenésico, eugenético ou piedoso, é permitido em caso de anencefalia do feto (ADPF 54, STF). Importante lembrar que essa hipótese não está prevista em lei, gerando indisfarçável controvérsia entre os operadores do Direito. A discussão chegou aos Tribunais Superiores. Provocado a se manifestar, o Supremo Tribunal Federal, na ADPF 54 ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), reconheceu que, diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia a dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intrauterino em mais de 50% dos casos. A gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é – e ninguém ousa contestar –, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto – que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade.
[…] Vale ressaltar que, em nenhuma hipótese, esta nota garante qualquer possibilidade aos chamados aborto social e aborto honoris causa, situações não justificadas à interrupção da gravidez e, portanto, passíveis de persecução penal.
Por fim, recomenda-se, em acréscimo a esta Nota, a leitura da Nota Técnica Conjunta (clique aqui), que questiona a constitucionalidade da Portaria nº 2.561, de 23 de setembro de 2020 elaborada pelo Centro de Apoio Criminal e Centro de Apoio Cível e de Tutela Coletiva do MPSP, que dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS, a respeito da qual foi lançado posicionamento que a ela atribui caráter de violação aos direitos humanos das mulheres e meninas, infringindo tratados internacionais ratificados pelo Brasil, bem como a Constituição Federal da República e leis federais.
São Paulo, 23 de junho de 2022.
Núcleo de Gênero do Centro de Apoio Operacional Criminal do Ministério Público do Estado de São Paulo
Núcleo de Atendimento à Vítima de Violência e seus Familiares do Ministério Público do Estado de São Paulo
Acesse na íntegra a Nota de Posicionamento do Núcleo de Gênero do CAOCrim e do NAVV do Ministério Público do Estado de São Paulo.