Recentemente assisti a uma palestra que me marcou, talvez porque tenha sido a melhor tradução do momento que estamos atravessando, no Brasil e no mundo, de crescimento de uma “nova gramática” do preconceito e discriminação contra as mulheres, população negra, LGBTQIA+ e outros grupos sociais historicamente vulnerabilizados.
Nessa nova gramática, expressão utilizada pelo sociólogo e professor da UFRJ Michel Gherman em evento para o Conselho Nacional do Ministério Público sobre as políticas de enfrentamento ao discurso de ódio, segmentos da sociedade partem da necessidade de volta a um passado, que era harmônico porque consolidado por grupos dominantes. Para tanto, é preciso destruir a possibilidade de qualquer projeto político defendido por grupos sociais que, apesar do passado de silenciamento e opressão, conseguiram avançar na conquista de direitos nos últimos anos, para então devolvê-los à penumbra.
Com a utlilização dos mesmos elementos do antissemitismo histórico, nesse discurso, nem todas as mulheres são inimigas e merecem ser atacadas, apenas as que resistem; nem todos os negros, apenas os que assumem com orgulho a negritude, como os quilombolas; nem toda população indígena, mas aqueles que lutam por seus direitos; e, ainda, nem todos os LGBTQIA+, mas os que desejam o direito de manifestar publicamente seu afeto sem serem violentados.
No processo de alfabetização da população para essa nova gramática, a misoginia escancarada cede lugar ao discurso sedutor de pretensa defesa das mulheres, mas, evidentemente, não de todas, e sim daquelas que são mães, esposas, filhas, honestas e fiéis, merecedoras de proteção, não sendo admissível a violência física contra elas.
Exemplo dessa gramática está no crescimento de lives, podcasts e, mais recentemente, até um pseudo documentário que, sob a justificativa de “ouvir o outro lado”, se utiliza da versão exclusiva do agressor de Maria da Penha Fernandes, para em nome da “busca da verdade”, propor a revisão de sua história e da própria origem da Lei Maria da Penha. Aliás, a escolha de Maria da Penha não pode ser vista como aleatória: desabonar a figura que virou símbolo de luta e coragem contra a violência de gênero, cuja história permitiu a elaboração da lei que rompeu com o paradigma de omissão, negligência e descaso em relação ao sofrimento de milhares de mulheres vítimas de violência doméstica no país, é também desqualificar todo o debate público construído nos últimos 17 anos sobre igualdade de gênero.
Nesse tipo de material, a narrativa de ataque à Maria da Penha, o descrédito de sua palavra e a deslegitimação do próprio Sistema de Justiça que condenou seu agressor é permeada por argumentos de defesa de uma legislação que proteja as “verdadeiras” vítimas de violência doméstica. Tudo parte dessa estratégia sofisticada de confundir a população e dizer que certas mulheres são um perigo para a sociedade, inclusive, e principalmente, para as “verdadeiramente vítimas”.