Diretora de filme cotado para o Oscar escreve sobre a dor de perder um filho e como isso mudou sua vida
A enfermeira disse para irmos à maternidade quando a dor ficar insuportável.” Se isto não é insuportável, não sei o que é, respondi numa das pausas das contrações. É engraçado como naquele momento eu me sentia, mais do que nunca, duas pessoas. Por um minuto, eu não sabia como acolher entre meus quadris aquela torção que queria me rachar no meio. Alcançava decibéis que nunca imaginei que minhas cordas vocais e pulmões alcançariam, e não me importava que o quarteirão inteiro ouvisse. Mas dez segundos depois, num intervalo da dor, eu fazia graça da situação, ria como se aquilo tivesse sido vivido por outra pessoa em outro tempo, conversava sobre qualquer besteira. Eu me sentia numa bipolaridade natural e saudável.
Num desses momentos felizes, João foi ao banheiro e, ainda de lá, enquanto fechava a braguilha, começou a dizer: “Entrevistei presos políticos que falaram que, quando eram torturados, a dor era tão insuportável que eles preferiam morrer do que continuar naquilo.” Ele foi contando isso conforme se aproximava do quarto onde eu estava, em seu apartamento no subsolo de Lisboa. E concluiu: “Quando sentires isso, vamos para o hospital.”
A cena resume o homem que eu tinha escolhido para ser o pai de meu filho. Eu o admirava pela frieza em situações extremas, fosse o estranho parto de nosso primeiro filho ou a cobertura fotojornalística da guerra do Afeganistão. Ele é dono de um humor ácido a ponto de, naquele momento, me comparar a presos políticos. “Mas como vou saber quando a dor for insuportável assim?”, perguntei, antes de gemer mais alto que qualquer outro som que já fiz. João quase riu e disse: “Vais saber.”
Quando vomitei depois de tomar um gole d’água, pedimos um Uber para a maternidade. Me levaram para a sala da médica. Quando ela me perguntava qualquer coisa, eu respondia com “joinhas” enquanto me contorcia, agachada ao lado da cadeira ginecológica onde deveria estar sentada. “Não tem posição possível, né?”, ela comentou. A bolsa estourou ali mesmo, cheia de sangue. Levantei o vestido largo, arremessei a calcinha na lixeira. Alguém forrou o chão com papel. Vomitei o que já não tinha no estômago. Me vestiram de hospital, disseram: “contração 5.”
Por um momento, senti como se minha mãe tivesse posto a mão nas minhas costas. Logo apareceram minhas irmãs, depois três amigas – Lia, Lu, Lelê. Elas me olhavam serenas, me tocavam sem encostar, me lembravam que era assim mesmo, que todas passamos por isso. Foi uma miragem. Mas sentia que elas estavam ali, mesmo estando do outro lado do Oceano Atlântico. A enfermeira me olhou nos olhos. “Respira fundo.” Fiquei presa nos olhos dela, negros, cercados por cachos. Voltei para a sala da médica, para aqueles dois corpos em fusão que queriam se separar.