Mesmo sob um governo progressista, direitos reprodutivos continuam sendo minados por uma dominância de grupos religiosos e conservadores nos campos político, judiciário e cultural
Quando descobriu que estava grávida, aos 34 anos, Roseane Santos tinha acabado de perder o emprego. Mãe solo de um garoto de 6 anos e vinda havia pouco do Amazonas para São Paulo, sozinha, para garantir o futuro de sua família, sentiu o chão se abrir ao ver o resultado do teste. “Perdi totalmente o equilíbrio. Senti que meu mundo entrou naquele buraco que se abriu”, conta de sua casa em Embu das Artes. Sem o apoio do parceiro com quem vivera durante nove anos – pai de seu filho –, longe da família e sem fonte de renda, ela viu o medo tomar conta de sua vida, invertendo dia e noite, sem conseguir dormir ou tomar banho. “Só não deixei de cuidar do principal, que é meu filho, que eu amo muito.”
Decidida a garantir o cuidado e a educação da criança, Roseane começou a buscar formas de interromper sua gravidez. “Retroceder não era uma alternativa para mim. Eu já sabia das responsabilidades que eu tinha com meu filho, de cuidar, de arcar com a responsabilidade financeira. As pessoas dizem: ‘Onde come um, comem dois’. Mas não é isso. É preciso dar uma perspectiva melhor para ele. Então, se instaura o medo.” Entre pesquisas na internet, Roseane perdeu todo o dinheiro da rescisão de emprego, que havia acabado de receber, em golpes, medicamentos que nunca chegaram e injeções que não funcionaram.
Quando decidiu encarar o medo e ir a uma maternidade para ver como corria a gestação, confiou a uma médica que não estava feliz com a situação. Mulher negra e periférica, na clínica ela se viu rodeada de mulheres brancas com quem não se identificava. Em vez do acolhimento que esperava da profissional de saúde, ela recebeu, com tom de desaprovação, a fala: “Você deveria agradecer a Deus por isso”.
“Como posso agradecer se não trabalho, moro de favor na casa dos outros e não tenho nenhum suporte familiar?” A médica, então, falou que, se Roseane continuasse falando sobre aquilo, ela poderia “tomar as medidas necessárias”. Desolada com a situação, ela voltou para casa andando: “Eu achava que tinha que morrer; era a única forma de dar um jeito naquele sofrimento horroroso. Mas me lembrei do meu filho. Quando chegou a hora de buscar ele na escola, eu pensava: ‘Se agora eu não for, quem que vai buscar ele? Quem que vai cuidar do meu filho?’. Foi aí que eu decidi que não poderia desistir da minha vida”.
A atitude da médica que recebeu Roseane reflete o estado do debate sobre a maternidade e o aborto no Brasil hoje. Mesmo sob um governo progressista, os direitos reprodutivos continuam sendo minados por uma dominância de grupos religiosos e conservadores nos campos político, judiciário e cultural. “O Brasil e o mundo vivem esse fenômeno de crescimento do conservadorismo, e um aspecto que deve ser mencionado é a cultura de ‘criminalização social’ do aborto. Somos uma sociedade conservadora, em que cala fundo o lobby contra a chamada ‘ideologia de gênero’ e se expande o proselitismo religioso fundamentalista, que ganha espaço afastando o país de sua identidade de Estado laico”, definem Laura Molinari e Angela Freitas, ambas diretoras da campanha Nem Presa Nem Morta.
Grupos religiosos aproveitam-se do Estado para difundir agenda antigênero
Além da influência da religião na sociedade, no entanto, está sua articulação política e a máquina de propaganda que a sustenta. Tabata Pastore Tesser, socióloga e integrante da equipe do Católicas pelo Direito de Decidir, lembra que “hoje, no Brasil, há muitos grupos religiosos que usufruem de diversos privilégios econômicos em relação ao Estado brasileiro, que permitem acesso, por exemplo, a concessões públicas de televisão, em que grupos religiosos não são fiscalizados no tipo de desinformação que circulam”. De fato, segundo reportagem publicada no Estadão (25 out. 2021), durante o governo de Jair Bolsonaro, 67 concessões de TV aberta digital contemplaram entidades ligadas a grupos religiosos. Somados, canais católicos e evangélicos obtiveram 40% de todas as 166 outorgas e consignações digitais autorizadas.