Foram entrevistados quase 1.000 jovens de 10 a 14 anos da zona leste da cidade de São Paulo
O sentimento de insegurança no contexto familiar é um componente muito forte da subjetividade de adolescentes bastante jovens das periferias da cidade de São Paulo. Isso é o que se pode deduzir generalizando dados de uma pesquisa realizada em 2021, na zona leste da capital paulista, com quase mil adolescentes de 10 a 14 anos.
Foram entrevistados exatamente 996 adolescentes dessa faixa etária: 523 do sexo feminino e 473 do sexo masculino. Desse conjunto, 62% disseram sentir medo ou ficar mal quando os adultos os xingavam, diziam palavras maldosas ou afirmavam não gostar deles; 36% afirmaram que alguma vez haviam sentido que não tinham ninguém para protegê-los; e 27% informaram que já haviam tido medo de que os pais ou outros adultos pudessem machucá-los seriamente, causando ferimentos ou morte. Violência parental, carência financeira e consumo de álcool ou drogas pelos genitores foram apontados com percentuais expressivos.
A pesquisa, cujos resultados vieram a público agora, foi coordenada no Brasil por professores da FSP (Faculdade de Saúde Pública) e da EE (Escola de Enfermagem) da USP (Universidade de São Paulo). E faz parte de uma investigação global intitulada Geas (Global Early Adolescent Study).
Liderado pela Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health, dos Estados Unidos, com a participação da OMS (Organização Mundial de Saúde), o Geas mobilizou os esforços de pesquisadores das Américas, Europa, África e Ásia, para saber o que acontece com jovens, na faixa etária de 10 anos a 14 anos, moradores em áreas periféricas dos países envolvidos. Gênero e saúde reprodutiva foram as questões centrais abordadas. No Brasil, a investigação foi encabeçada por Ana Luiza Vilela Borges (EE-USP), Cristiane da Silva Cabral (FSP-USP) e Ivan França Júnior (FSP-USP).
“A faixa etária de 10 a 14 foi escolhida por ser uma fase em que muitas coisas acontecem com esses adolescentes: mudanças aceleradas nos corpos; negociação de espaços de liberdade no interior da família e aprendizados sobre como lidar com instâncias fora do âmbito doméstico; maior engajamento na vida escolar e inserção em novos ambientes. Paradoxalmente, há muito pouco estudo a respeito, a não ser aqueles relativos às transformações corporais. Então, buscamos entender essa profusão de acontecimentos. Globalmente, importava identificar os pontos de convergência e os pontos de disparidade nos aprendizados das normas de gênero nos diferentes países”, conta Cabral à Agência Fapesp.
A pesquisadora enfatiza que os aprendizados das normas de gênero vão influenciar decisões e medidas de proteção ou não na vida futura, quando esses jovens iniciarem a vida sexual, os namoros e outras interações.
“Como se aprendem os traços distintivos nomeados como ‘masculinidade’ e ‘feminilidade’? Eles são iguais ou se diferenciam ao redor do globo? Qual é o impacto desse aprendizado na vida sexual e na saúde reprodutiva futuras? Estas foram diretrizes centrais de nossa pesquisa. Porque, na fase de 10 a 14, há uma forte intensificação desse aprendizado. Além do que se aprende no âmbito da família, há também o que se aprende na escola e o que se aprende com os amigos”, explica Cabral.
Ela argumenta que, por mais que se possa colocar em questão o binarismo de gênero, com sua divisão rígida entre “coisas de menino” e “coisas de menina”, ninguém se locomove no mundo fora das regras de gênero. “De uma maneira ou de outra, essas regras se colocam. O que se contesta hoje, isso sim, tanto nos movimentos sociais quanto na academia, é a reificação do gênero em dois polos. Insistimos na importância do reconhecimento da historicidade e da crítica a essa construção binária e dicotômica”, fala.