Termos como “legítima defesa da honra”, “crime passional” e “matar por amor” mascaram a realidade dos assassinatos de mulheres por parceiros, refletindo a naturalização e legitimação desses crimes em uma cultura misógina e violenta.
Até recentemente, enquanto a “honra” masculina era defendida com sangue, a violência contra as mulheres dentro de casa era invisível, tratada como uma “questão da vida privada” e legitimada pelo Direito por meio da interpretação da expressão “exercício regular de direito”, o que incluía, até mesmo, a relação sexual forçada pelo marido, envernizada sob o eufemismo de “cópula lícita, dever recíproco entre os cônjuges”.
Foi apenas com a Constituição de 1988 que as mulheres passaram a ser reconhecidas como sujeitos de Direito, com a garantia constitucional de igualdade jurídica com os homens. No entanto, essa igualdade formal nunca foi suficiente para que a realidade social refletisse condições materiais justas. Por isso, o direito à igualdade inclui a dimensão isonômica, que exige tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, conforme suas particularidades.
E é devido ao reconhecimento dessa desigualdade do tratamento (jurídico e sociocultural) da violência de gênero que surge a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), cujo eixo principal reside na previsão de medidas protetivas de urgência que obrigam condutas ao agressor e oferecem uma rede de serviços e assistência para a vítima.
A lei trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro a inovação do combate à violência a partir de um conjunto de medidas pensadas para proteção das vítimas, de forma não exclusivamente penal, reconhecendo o caráter multifacetado da situação de violência doméstica contra mulheres, que não pode ser subsumida exclusivamente aos tipos penais sancionados com medidas coercitivas da liberdade de ir e vir.
Como se trata de violência que pode ou não estar tipificada na lei penal, e que é praticada no âmbito da vida privada, há a necessidade de se combinar a aplicação de conjuntos normativos diversos, sempre tendo por norte a proteção à vida e à integridade física das mulheres.
Apresenta normas de natureza híbrida que contemplam previsões penais, processuais, administrativas e cíveis para que se proteja a vida e a integridade das mulheres. Em 2023, a legislação foi alterada pela Lei 14.550, que deixou expresso que as medidas protetivas serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência, bem como que vigorarão enquanto persistir risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes.
Prazo da violência
Traço este caminho para destacar uma interpretação que, embora evidente, precisa ser reafirmada. A hermenêutica jurídica ensina que a interpretação teleológica considera a finalidade da norma. No caso da Lei Maria da Penha, essa finalidade é clara: proteger a integridade física e a vida das mulheres em risco devido à ação de parceiros e ex-parceiros, corrigindo distorções de interpretações anacrônicas do Direito.
A interpretação teleológica é um instrumento útil para responder à questão da natureza jurídica das medidas protetivas de urgência para vítimas de violência doméstica. Essa discussão é relevante diante da disputa que acontece no Superior Tribunal de Justiça sobre a natureza cível ou criminal dessas medidas, e o entendimento errôneo de alguns de que, sendo de natureza criminal, tais medidas deveriam comportar prazo determinado.
No entanto, é descabido assim interpretar um dispositivo legal que afirma expressamente que as medidas vigorarão enquanto persistir o risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes. A finalidade da norma é literal, expressa e evidente: não há prazo legal justamente pelo fundamento pelo qual a medida existe, que é a proteção das mulheres em situação de violência. Violência não tem prazo para acabar.