Como o gênero influencia os cuidados das mulheres que abusam das drogas

23 de setembro, 2024 Jornal da USP Por Silvana Salles

Segundo pesquisadora, as normas sociais podem favorecer ou prejudicar a adesão ao tratamento, dependendo do amparo que as mulheres recebem

Trabalhando como residente em um Núcleo de Apoio à Saúde da Família na periferia de Fortaleza, a psicóloga e mestra em Saúde Pública Yárita Crys Alexandre Hissa Medeiros notou que as mulheres que faziam uso abusivo de substâncias eram conhecidas de todos do bairro, mas dificilmente chegavam à Unidade Básica de Saúde. Essa observação levou Yárita a pesquisar de que forma as desigualdades de gênero afetam a experiência dessas mulheres com os serviços de saúde.

“Se você observar, um homem que usa substância é muito mais palatável, socialmente falando, do que uma mulher. Então, aquele homem conseguia chegar à UBS para poder receber cuidado, porque ele não era tão julgado. Aquela mulher não conseguia, principalmente se ela fosse mãe. Aí, o julgamento era três vezes mais intenso”, reflete a psicóloga.

Em sua pesquisa de mestrado, realizada na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, Yárita conversou com profissionais dos Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPS-AD) da cidade de São Paulo para entender de que maneiras a desigualdade de gênero afeta a acolhida e o tratamento das mulheres. A pesquisa foi desenvolvida sob a orientação da professora Elisabeth Meloni, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP.

Os CAPS-AD são serviços públicos de saúde mental especializados no atendimento a usuários de álcool e outras drogas. Na capital paulista, esses equipamentos estão distribuídos por todas as regiões, em bairros ricos e pobres, e têm as portas abertas a qualquer pessoa que precise de atendimento, sem necessidade de encaminhamento médico. Algumas unidades contam com leitos de acolhimento integral, funcionando 24 horas. Nem todas as cidades brasileiras contam com serviços semelhantes.

Yárita entrevistou profissionais de quatro CAPS-AD, localizados em três diferentes regiões da cidade. Assim, ela pôde conhecer realidades distintas: de equipes que trabalham majoritariamente com pessoas em situação de rua e de outras que atendem usuários de classe média. A ideia era entender como se dava a oferta de cuidado às mulheres no dia a dia do serviço.

Como as entrevistas foram feitas durante a pandemia, a pesquisadora não pôde conversar com as mulheres que utilizam o serviço. Apesar dessa limitação, ela conseguiu material suficiente para chegar a algumas conclusões. Uma delas é que a desigualdade de gênero atravessa toda a experiência das mulheres que procuram o CAPS-AD, desde as motivações para o uso de drogas até os fatores que influenciam a adesão ou não à terapia.

Outra é que, para avançar no atendimento dessas mulheres, os CAPS-AD precisam adotar a perspectiva de que a saúde integral da mulher é indissociável da saúde sexual e reprodutiva.

Redução de danos: uma estratégia de cuidado

Os CAPS-AD trabalham com a estratégia de redução de danos. Segundo a professora Elisabeth, envolve um conjunto de práticas para reduzir não somente o dano causado pela droga em si, mas também outros fatores que prejudicam a saúde durante o uso da droga. A estratégia se difundiu pelo mundo nos anos 1980 a partir da epidemia de HIV, com ações para prevenir a disseminação do vírus entre usuários de drogas injetáveis. No Brasil, a primeira tentativa de implementar um programa desse tipo foi em 1989, na cidade de Santos. Era para ser um programa de troca de seringas, mas a Justiça barrou e ele nunca foi implementado. O título de pioneiro acabou ficando com o estado da Bahia, nos anos 1990.

Grupos especializados no tema encaram a redução de danos como uma estratégia que envolve intervenções nos níveis individual, comunitário, político e legal. Como o objetivo da redução de danos é minimizar os impactos negativos que o uso de drogas pode causar à sociedade e aos cidadãos, sempre valorizando a autonomia da pessoa usuária, não se obriga ninguém a parar totalmente com as drogas para continuar o tratamento. Apesar disso, as entrevistadas de Yárita comentam ser muito comum que as mulheres evitem ir ao CAPS-AD quando não estão sóbrias.

“Elas se cobram que têm que estar bem para poderem vir, elas não acham correto elas virem estando mal.(..) Para poder serem cuidadas, elas não querem se mostrar vulneráveis, elas querem mostrar que tá tudo bem! Elas têm um pouco desse senso, essa consciência de vergonha, de aparecer e chegar e falar ‘ó, ontem eu fiz uso disso, disso, disso, disso e disso’, entendeu? Sendo que não… né!”, diz uma das profissionais citadas na dissertação.

Em um e-book publicado em 2019 pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o professor Antonio Nery, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), diz que a redução de danos se faz “a partir dos ‘bons encontros’, no reconhecimento recíproco e na honestidade das diferenças e das diferentes escolhas que cada um(a) pode fazer em suas vidas”.

No caso das mulheres, Yárita observou que os “bons encontros” dependem de se criar condições para que elas possam frequentar as atividades do CAPS-AD. Isso pode ser um desafio por uma série de fatores: as tarefas de cuidado, a falta de dinheiro para a condução e até mesmo o medo de encontrar um ex-namorado abusivo. Nesse sentido, na dissertação ela destaca como uma boa prática que acontece nos CAPS-AD a disponibilidade de técnicos do serviço para cuidar dos filhos das usuárias quando elas precisam levá-los consigo.

As trabalhadoras do CAPS-AD colecionam muitas histórias das mulheres que procuram o serviço. Nas entrevistas, foram comuns relatos sobre mulheres que buscaram o serviço porque haviam perdido a guarda dos filhos ou estavam na iminência de perdê-la, como este a seguir:

“Tem as demandas espontâneas, eu tive uma que morria de medo de ir no CAPS fazer seu tratamento porque tinha medo que a gente fosse denunciar ela e ela perder a guarda da filha, e tem aquelas que chegam a partir disso, já perderam a guarda. (…) por mais ambivalente que pareça essa resposta, é algo que possa fazer elas buscarem o serviço de saúde, buscar de fato estar em… se cuidarem mais, né”, diz a trabalhadora.

A angústia da maternidade compulsória e outras formas de violência

Inicialmente, Yárita pretendia tratar de maneira central a questão da maternidade das mulheres que fazem uso abusivo de álcool e drogas. O interesse tinha a ver com suas observações durante a residência em Fortaleza. Conforme conhecia melhor as mulheres que atendia, a psicóloga percebeu que muitos casos de ansiedade, depressão e abuso de álcool e drogas estavam ligados ao peso dos papéis de gênero imposto a elas, principalmente quando estavam gestantes.

“A maternidade era algo muito difícil, tanto por muitas vezes estar ligado mais ao desejo do parceiro do que ao dela, como também pelo fato de que muitas vezes elas não conseguiam nem expressar dentro do ambiente da UBS o não desejo pela maternidade. Era logo barrado, não se escutava aquela angústia que aquela mulher estava trazendo. E era uma angústia inclusive em relação ao futuro, porque algumas vezes ela já era mãe, então ela sabia que toda a questão de ter que dar conta de casa, de criança, de trabalho ia ficar nas mãos dela”, lembra a pesquisadora.

Durante o mestrado, ela ouviu histórias de mulheres que abusam do álcool e das drogas para suportar a rotina do trabalho de cuidado com a casa e a família. Mas também ouviu histórias de mulheres usuárias de drogas que, estando grávidas, passaram a receber no serviço uma atenção e um cuidado que não encontrariam em outros contextos. “A maternidade, quando ela é amparada, socialmente falando, pode ser um ponto de cuidado muito positivo para essas mulheres. De reelaborar a sua relação com a substância, de acessar uma autoestima, de se ver, ser enxergada como cidadã”, diz a psicóloga.

Ao longo da pesquisa, um tema novo se impôs: o da violência. “Foi algo muito debatido durante as entrevistas, então a gente percebe como a violência de gênero é um fator importante para o uso abusivo de substância. Muitas usam substância para lidar com a violência de gênero que sofreram, ao mesmo tempo em que ela se vulnerabiliza mais. E também existe a questão da troca do sexo por substância. Então, como esse corpo é visto como o corpo violável, ele também é visto como mercadoria”, diz Yárita.

A violência chega até mesmo a ser patrimonial quando os companheiros dessas mulheres as privam de acesso a dinheiro, documentos e objetos pessoais. Na dissertação, a pesquisadora relata um caso de uma mulher assistida pelo CAPS-AD que viu sua família vender todos os móveis de sua casa, alegando que ela não cuidava da residência.

Essas histórias evidenciam os desafios de um atendimento de saúde mental sensível às questões de gênero, bem como de uma política de drogas melhor. “Essas pessoas precisam de políticas públicas, como todos nós precisamos. Mas elas precisam de um olhar também diferente do que tem se dado para elas, porque no Brasil, até o momento, eu não conheço nenhuma política que tenha dado certo em relação à população de rua, ou que tenha dado certo em relação aos usuários de drogas”, comenta Elisabeth, a orientadora da pesquisa.

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