Com cotas para candidaturas femininas há quase 30 anos, Brasil ocupa a 132ª posição em ranking de igualdade de gênero. Entre 2020 e 2022, percentual de prefeitas eleitas foi só de 12%. Estudos mostram: modelo eleitoral e dinâmicas partidárias as sabotam
Passados quase 30 anos da primeira legislação criada no Brasil para estabelecer cotas de gênero em candidaturas de eleições, a representatividade das mulheres na Câmara dos Deputados subiu de 6%, em 1998, para 18%, em 2022. Essa é uma evolução inferior se comparada com a de países como Argentina e México, que também adotaram medidas similares nas décadas de 1990 e 2000 e, hoje, registram 42% e 50% de presença feminina em seus parlamentos, respectivamente. Para compreender por que o país avançou menos em relação a outras nações latino-americanas, pesquisas desenvolvidas em diferentes universidades têm mostrado que as características do sistema eleitoral e a dinâmica de partidos constituem barreiras à ascensão feminina na administração pública brasileira.
Dados da União Interparlamentar (IPU), organização internacional que mede a participação feminina em parlamentos de mais de 180 países, indicam que 73% dos políticos no mundo são homens. Apesar de a baixa representatividade feminina na esfera pública ser um problema global, a situação do Brasil parece ser crítica. O país ocupa a 134ª posição no ranking de igualdade de gênero da IPU, o que representa o pior panorama da América Latina. Assim, embora as mulheres constituam mais de 50% da população brasileira, a participação feminina na Câmara dos Deputados é de 17,5%, enquanto no Senado é de 17,3%.
“Essa disparidade resulta em barreiras institucionais que colaboram para perpetuar a desigualdade de gênero na administração pública”, afirma a cientista política brasileira Malu Gatto, da University College London (UCL), no Reino Unido, que acaba de publicar o livro Candidatas – Os primeiros passos das mulheres na política no Brasil (FGV Editora, 2024). A obra foi elaborada com a também cientista política Débora Thomé, que faz pós-doutorado no Centro de Estudos em Política e Economia do Setor Público (Cepesp) da Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo, com bolsa da FAPESP.
Resultado de pesquisa desenvolvida entre 2021 e 2023, que envolveu a realização de 188 entrevistas com 102 candidatos de todo o país, sendo 79 mulheres e 23 homens, o trabalho cruzou informações levantadas nos depoimentos com dados eleitorais. “O objetivo foi mapear os obstáculos enfrentados por elas em suas trajetórias, especialmente no momento da candidatura, que historicamente vem sendo menos explorado em estudos acadêmicos”, informa Gatto. De acordo com a cientista política da UCL, isso acontece, entre outros motivos, porque é mais fácil obter dados sobre as mulheres eleitas do que sobre as candidatas, que muitas vezes acabam não tendo equipes de apoio, dificultando assim o contato.
Os resultados do estudo indicam que uma das grandes barreiras enfrentadas por essas mulheres durante a candidatura envolve a falta de suporte de lideranças partidárias. Isso se traduz, por exemplo, na pouca visibilidade em comícios e nos convites feitos de última hora para reuniões de tomada de decisão. Além disso, apesar de a Emenda Constitucional nº 117, de 2022, determinar que 30% dos recursos partidários sejam destinados a candidatas, a regra nem sempre é cumprida e, muitas vezes, o dinheiro chega para elas por último, impedindo a realização de uma campanha eleitoral eficiente. Outro problema relacionado com a questão financeira, segundo Gatto, é que as candidatas não recebem suporte legal e orientação sobre como podem gastar o dinheiro do fundo partidário. Com isso, diz a pesquisadora, muitas delas dependem de recursos próprios ou de voluntários para ganhar visibilidade pública e competitividade.
A violência foi outra questão mencionada pelas entrevistadas como um aspecto recorrente na experiência da candidatura. “As mulheres relatam episódios de xingamentos e ataques on-line vivenciados durante as campanhas, enquanto casos mais graves de agressões são frequentemente reportados por mulheres negras e transgênero, incluindo assédio sexual e ameaças diretas à segurança”, comenta a pesquisadora. Gatto aponta ainda que, embora homens também sejam vítimas de violência, eles tendem a considerar as agressões como parte inerente do jogo político. “Já as mulheres identificam e denunciam essas práticas, destacando o impacto negativo que elas causam em suas campanhas e no âmbito pessoal”, compara.
Compreender as razões pelas quais a presença feminina na política avança pouco no Brasil também faz parte da agenda de pesquisa da socióloga Clara Maria de Oliveira Araújo, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Um dos motivos para explicar esse cenário envolve as características do sistema eleitoral brasileiro e as regras para eleição de deputados e vereadores. Países como Argentina e México têm um sistema de lista fechada, no qual o eleitor vota no partido, e não no candidato. Nesse modelo, cada partido estabelece previamente a ordem dos candidatos para os quais os votos serão destinados e as leis de cotas determinam que haja alternância entre os homens e as mulheres que integram as listas.
Já no modelo de lista aberta, que vigora no Brasil, o eleitor pode votar tanto em um candidato específico como no partido. Porém, nesse sistema, os votos na legenda são computados para os candidatos mais votados. Segundo Araújo, listas abertas geram uma competição interna dentro dos partidos, que acaba prejudicando as mulheres. “A distribuição de recursos, o tempo de mídia e o apoio financeiro nos partidos tendem a favorecer candidatos que já possuem capital político e eles, geralmente, são homens”, diz a socióloga. Como as mulheres têm menos acesso a esses recursos, suas chances de sucesso eleitoral são mais baixas. Isso significa, de acordo com a pesquisadora, que, além de cotas, é necessário que os partidos ampliem os investimentos e o apoio institucional oferecido às mulheres.
Segundo Araújo, o sistema de lista aberta ajuda a explicar a facilidade com que a política de cotas em partidos foi aprovada no Brasil, em 1995, tramitando mais rapidamente do que em outros países latino-americanos. “As listas abertas do sistema eleitoral brasileiro fazem com que políticas de cotas sejam incapazes de alterar significativamente as chances de eleição de mulheres, ao contrário do que ocorre em países com listas fechadas”, afirma a socióloga.
Entre 2022 e 2023, Araújo realizou também uma pesquisa para o Observatório Nacional das Mulheres na Política da Câmara dos Deputados, analisando as chances de sucesso eleitoral de candidatos que já ocupam cargos políticos. De acordo com ela, os resultados indicam que aqueles que possuem experiência parlamentar têm muito mais chances de serem eleitos novamente, reforçando o efeito circular que perpetua a desigualdade de gênero na administração pública.
A socióloga foi a primeira mulher a assumir a presidência da União Nacional dos Estudantes (UNE), em 1982. À época estudante de graduação e diretora do Departamento Feminino da entidade, ela conta que foi indicada para o cargo depois que o então presidente da UNE precisou se afastar, em razão de perseguição política. Nesse período, Araújo acabou se destacando nos quadros da instituição por ser a única mulher dentre os diretores. “Como poucos estavam dispostos a assumir a presidência da entidade, com receio de serem retaliados pelo regime, acabei sendo a escolhida. De certa forma, isso aconteceu por não restarem alternativas”, deduz.
De acordo com a pesquisadora, durante o seu mandato, que durou até 1983, ela enfrentou preconceito e discriminação, inclusive por parte de grupos progressistas. “Em assembleias com milhares de estudantes, meus argumentos eram frequentemente desqualificados por outros líderes”, relata. A experiência acabou por motivá-la a estudar a participação das mulheres em movimentos sociais. Assim, em 1986, ela iniciou o mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para investigar a presença feminina em três sindicatos: dos metalúrgicos, dos bancários e de telecomunicações. “Nesses espaços, elas também enfrentavam dificuldades para serem ouvidas e havia resistência em aceitá-las como líderes. Algumas eram proibidas de falar em carros de som com a justificativa de que tinham a voz muito fina”, recorda.
Também motivada por uma experiência do cotidiano, Marcella Barbosa Miranda Teixeira, secretária-executiva da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), começou a estudar a presença de mulheres na política em 2019. Isso aconteceu após aquela instituição de ensino, criada em 1969, ter elegido apenas em 2019 sua primeira reitora: a professora Cláudia Aparecida Marliére de Lima. No doutorado em administração, concluído em 2022 na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), Teixeira identificou que as mulheres enfrentam pouca resistência dos partidos para se candidatar aos cargos no Legislativo federal por causa da existência das cotas, mas se deparam com entraves durante a campanha eleitoral. “Há poucas mulheres em cargos de liderança nos partidos, de forma que elas não conseguem participar da tomada de decisões importantes sobre como será o apoio financeiro a cada candidato”, comenta Teixeira.
No estudo, a pesquisadora também identificou que no plenário as deputadas são direcionadas para tratar de temas em geral associados ao gênero feminino, como educação, saúde e família. Por outro lado, são menos incentivadas a atuar em comissões ligadas a finanças, orçamento e justiça. “Mulheres com filhos pequenos costumam ser questionadas sobre a sua capacidade de conciliar vida política com maternidade, enquanto os homens não recebem a mesma cobrança”, compara. Teixeira também observou que, de maneira geral, a maioria das deputadas federais compartilha duas pautas comuns: a busca por maior participação feminina na vida pública e a defesa de medidas específicas à saúde da mulher, como a melhoria do atendimento pré-natal e da assistência ao parto.
Em doutorado em andamento na Universidade de São Paulo (USP) com financiamento da FAPESP, a pesquisadora Vanilda Souza Chaves, formada em relações internacionais, investiga os impactos das cotas no Brasil em comparação com países latino-americanos e as dinâmicas intrapartidárias que afetam a representação das mulheres na política brasileira. De acordo com ela, até 2010, os partidos políticos brasileiros frequentemente não cumpriam as cotas. A situação começou a mudar após alterações na legislação eleitoral e a intervenção do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que passou a fiscalizar o registro das listas apresentadas pelos partidos. Chaves considera que as sanções aplicadas aos partidos no Brasil são menos eficazes do que as ações instituídas em nações como Bolívia e México, que adotaram cotas em 1997 e 2002, respectivamente, e paridade de gênero em 2010. A paridade inclui uma regra de alternância entre homens e mulheres nas listas eleitorais, mesma característica apontada anteriormente por Araújo, da Uerj. Nesses países, os partidos são obrigados a cumprir as cotas de gênero como condição para o registro das candidaturas e a participação em eleições.
Além de mapear os entraves em campanhas eleitorais, o estudo de Gatto e Thomé identificou perfis e motivações que levam as mulheres a pleitear cargos públicos. Muitas delas são líderes comunitárias, que buscam na política uma estratégia para representar e defender os interesses de seus grupos, entre eles organizações religiosas ou associações LGBTI+. Já outras decidem disputar eleições incentivadas pelo desejo de aumentar a representatividade feminina em espaços de poder, como forma de promover a igualdade de gênero, e a inspirar outras mulheres. Além disso, há aquelas que são convidadas por partidos, geralmente por já estarem envolvidas com política institucional ou por terem conexões com figuras influentes. “No entanto, esse convite nem sempre se traduz em apoio efetivo durante a campanha”, reitera Gatto.