Especialistas dizem que nunca antes viram uma corrida presidencial em que o assunto fosse tão central para as perspectivas eleitorais de cada candidato
Com menos de duas semanas até o dia da eleição presidencial nos Estados Unidos, uma grande questão paira sobre a campanha pela Casa Branca, e não tem nada a ver com a economia ou os ataques constantes entre o ex-presidente Donald Trump e a vice-presidente Kamala Harris sobre julgamento, caráter e aptidão mental. É sobre gênero.
A questão raramente é abordada diretamente por qualquer um dos candidatos. No entanto, o fato de Kamala ser mulher — e sua potencial chance de fazer história como a primeira presidente mulher do país — está definindo a campanha, criando uma disputa que, de maneiras explícitas e sutis, torna-se um referendo sobre o papel das mulheres na vida americana.
Adesivos pró-Kamala colados em banheiros lembram as eleitoras, “de mulher para mulher”, que o voto é secreto. Assessores de Trump usam epítetos sexualizados para ridicularizar homens liberais como fracos e afeminados. Pesquisa após pesquisa revela que a diferença nos padrões de voto com base no gênero perpassa todos os grupos demográficos.
E em conversas discretas, algumas apoiadoras de Kamala não conseguem evitar a sensação incômoda de que os homens em suas vidas estão tendo dificuldades para apoiar uma mulher — especialmente uma mulher negra de origem sul-asiática —, mesmo que não queiram admitir isso.
— Se ela fosse um homem, será que essa disputa estaria tão acirrada? — perguntou a governadora Janet Mills, do Maine, a um grupo de mulheres democratas após uma campanha por Kamala nos subúrbios de Pittsburgh.
Joyce Reinoso, uma dessas mulheres, respondeu prontamente:
— Ah, ela já teria vencido há três semanas.
Jogo de acertos e erros
Aqueles que estudam os padrões de voto há décadas dizem que nunca antes viram uma disputa presidencial em que o gênero fosse tão central para as perspectivas eleitorais de cada candidato — nem mesmo em 2016, quando Hillary Clinton se tornou a primeira mulher a obter a nomeação de um grande partido. Eles citam uma série de fatores: a difamação bem documentada de Trump em relação às mulheres, o potencial histórico de Kamala, as visões sexistas persistentes sobre mulheres no poder e, talvez o mais central, a revogação da Suprema Corte do direito constitucional ao aborto há dois anos.
— É como um jogo de acerto, ele precisa conquistar algumas mulheres para que os homens o levem à vitória, e nós precisamos conquistar alguns homens para que as mulheres a levem à vitória — disse Celinda Lake, uma experiente pesquisadora democrata que estuda o voto feminino desde que escreveu sua tese de mestrado sobre a diferença de gênero nas eleições presidenciais de 1980. — É exatamente a mesma fórmula, só que espelhada.
Uma pesquisa realizada pelo The New York Times e o Siena College neste mês mostra que a diferença de gênero se ampliou à medida que as mulheres mantêm seu apoio de longa data aos democratas, enquanto os homens se aproximam de Trump. Kamala tem uma vantagem de 16 pontos percentuais entre as prováveis eleitoras, enquanto Trump tem uma vantagem de 11 pontos entre os prováveis eleitores do sexo masculino.
Grande parte da divisão de gênero é impulsionada pela geração mais jovem de eleitores: a pesquisa mostra que 69% das mulheres de 18 a 29 anos favorecem a democrata, em comparação com 45% dos homens jovens — uma diferença que supera em muito a de qualquer outra geração de eleitores.
Os democratas acreditam que Kamala enfrenta uma forma profunda de sexismo que se apresenta de maneira diferente dos ataques do passado, quando líderes femininas eram questionadas abertamente com base no gênero e descritas em estereótipos clássicos de serem ou muito agressivas ou muito emocionais — e, às vezes, ambas as coisas.
O país mudou desde 2016, com mais mulheres alcançando posições de poder político, incluindo Kamala, a primeira vice-presidente mulher. Mas, em contraste com 2016, quando os liberais se deleitavam com a perspectiva da primeira presidente mulher, os democratas agora estão menos otimistas quanto ao poder persistente do sexismo na mente de alguns eleitores.
— Estamos todos protegendo nossos corações agora, já passamos por isso antes — disse Liz Shuler, a primeira mulher eleita para liderar a AFL-CIO (Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais), a maior federação de sindicatos do país. — Avançamos muito, mesmo desde 2020, com mulheres liderando de maneiras que nunca vimos antes. Não ser capaz de cruzar esse limiar final do cargo mais alto de poder no mundo seria um golpe muito duro.
A federação sindical de Shuler, um dos apoiadores mais poderosos dos democratas, registra uma diferença de 32 pontos no apoio a Kamala sobre Trump entre suas membros mulheres em pesquisas internas.
Kamala descarta as preocupações de que o sexismo possa prejudicar suas chances, dizendo que o país está “absolutamente” pronto para eleger uma presidente mulher.
— Nunca presumirei que alguém em nosso país deva eleger um líder com base em seu gênero ou raça — disse ela em uma entrevista à NBC News na noite de terça-feira.
Nenhuma das campanhas está cedendo todo um gênero para a outra.