(José de Souza Marins, especial para O Estado de S. Paulo) Para sociólogo, a falta de um sistema de cotas deixava de fora milhares de talentos potenciais de jovens que precisavam apenas de uma oportunidade e um desafio para mostrar do que são capazes
O julgamento da ação contra o regime de cotas raciais para ingresso na Universidade Nacional de Brasília é histórico porque leva a Justiça a decidir sobre os duradouros débitos de uma abolição mal feita da escravatura. A abolição não foi essencialmente motivada por intuitos humanitários nem pelo indiscutível reconhecimento da humanidade do negro em cativeiro. Nem o Estado nem os fazendeiros assumiram o ônus da escravidão que os beneficiara. Florestan Fernandes, em livro referencial da sociologia brasileira, já demonstrara os efeitos perversos dessa modalidade de abolição no estado de anomia e desorganização social, desamparo e pobreza, a que lançou o negro liberto. A abolição foi feita para libertar o senhor do fardo de seu escravo, cujo preço de mercado, com o fim do tráfico negreiro, tornou-o comparativamente oneroso e antieconômico em relação ao trabalho livre.
Em 1883, o abolicionista Joaquim Nabuco, que fora aluno da Faculdade de Direito de São Paulo, de uma rica família da Província de Pernambuco, publicou O Abolicionismo, um clássico do ideário da luta contra a escravidão. Nele, faz esta afirmação fundamental: “A emancipação não significa tão somente o termo da injustiça de que o escravo é mártir, mas também a eliminação simultânea dos dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor”. No entanto, citada como de outro autor, essa premissa fundamental não presidiu o embate judicial de agora nem influenciou a decisão final do STF. Embora estivesse em jogo a emancipação do povo brasileiro dos fantasmas das servidões que o assombram.
A escravidão indígena foi formalmente abolida em 1755 com o Diretório dos Índios do Grão-Pará e Maranhão e a escravidão negra o foi, como sabemos, em 1888. Invocou-o a vice-procuradora-geral da República, em citação incorreta, para explicar o fenômeno da miscigenação e impugnar a definição minimalista de negro na presente disputa, mesmo que a maioria dos negros seja constituída de mestiços, nem por isso menos negros. Alegou que a miscigenação entre nós foi produto de uma engenharia social dos tempos coloniais, que determinava “aos homens brancos a união com mulheres negras como uma estratégia de povoamento e de criação de força de trabalho escravo…”. Nada disso consta do Diretório que, para abolir a escravidão do índio e do pardo, suspendia as interdições estamentais que os alcançava e degradava socialmente o branco que casasse com índia. Era, juridicamente, outra escravidão.
O lugar desse equívoco ficou evidente na intervenção da representante do Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro, que questionou o dualismo branco-negro que informava o julgamento e informa a controvérsia sobre as cotas. O censo demográfico de 2012 contou no país 48,2% de brancos, 6,9% de pretos, 44,2 de pardos e 0,7% de amarelos e índios, e lembrou que juntar negros e pardos numa única categoria, como se fossem todos negros, usurpa direitos de identidade dos pardos e mestiços.
A questão é mais complicada do que a de direitos supostamente gerados pela cor da pele e nem foi isso que o Supremo decidiu. O País discrimina e na discriminação é injusto. A cor da pele é o estigma de marca, como assinala Oracy Nogueira, em que se apoia o preconceituoso para discriminar. Se recorrêssemos a um dos mais insignes conhecedores da nossa questão racial, o sociólogo Roger Bastide, saberíamos que a negritude não está na cor da pele. Está nas estruturas profundas e oníricas da consciência negra. Nesse sentido, um número provavelmente expressivo dos que se consideram negros, no critério do regime de cotas, negros não são, não obstante a cor da pele, pois descendentes dos que no cativeiro foram culturalmente privados da alma dessa negritude. Estão crucificados no estigma.
A decisão do STF legitima uma tendência histórica do Brasil contemporâneo, que é a do deslocamento dos seus eixos de orientação política da referência clássica e meramente teórica do cidadão abstrato da doutrina, das classes sociais da teoria e dos partidos políticos das ideologias. Essa decisão põe no centro das demandas e tensões os grupos sociais discretos e restritos que, através dos movimentos sociais e das ONGs, falam e reivindicam hoje pelos carentes de todo tipo, os socialmente lesados e os vulneráveis.
A decisão afeta a universidade. Os negros beneficiados pelo regime de cotas têm demonstrado, segundo várias fontes, competência que os iguala aos seus colegas do regime tradicional. É evidente que o problema não está num suposto filtro racial para ingresso na universidade e sim no critério de recrutamento que deixa de fora milhares de competências e talentos potenciais de jovens que precisam apenas de uma oportunidade e de um desafio para mostrar do que são capazes. Afeta porque turba positivamente o privilégio dos que acham que, tendo ingressado na universidade, já não têm o dever de provar continuamente que têm direito de ocupar a vaga que nela ocupam. Agora, o terão.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE EXCLUSÃO SOCIAL E A NOVA DESIGUALDADE (PAULUS, 2009)
Acesse em pdf: A raça da universidade pública, por José de Souza Martins (O Estado de S. Paulo – 29/04/2012)