O pacote antifeminicídio: Uma análise jurídica e crítica das novas medidas, por Ana Paula Trento e Florence Rosa

04 de fevereiro, 2025 Migalhas Por Ana Paula Trento e Florence Rosa

A compreensão do feminicídio como fenômeno jurídico-social tem suas raízes na década de 1970, quando a socióloga Diana Russell cunhou o termo “femicide” para designar os assassinatos de mulheres por razões de gênero. Na América Latina, a antropóloga mexicana Marcela Lagarde adaptou o conceito para “feminicídio”, agregando a dimensão da responsabilidade estatal na prevenção e repressão dessas mortes, especialmente após os emblemáticos casos de Ciudad Juárez, no México.

O caso “Campo Algodonero” (González e outras vs. México), julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2009, tornou-se um marco jurisprudencial ao reconhecer a responsabilidade estatal por falhas sistemáticas na prevenção, investigação e punição de feminicídios. Esta decisão histórica estabeleceu parâmetros fundamentais para a compreensão da violência de gênero como violação de direitos humanos, exigindo respostas estatais efetivas.

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994) fornece o marco normativo internacional que fundamenta a obrigação dos Estados em adotar medidas específicas contra a violência de gênero. O Brasil, como signatário, assumiu o compromisso de implementar legislação e políticas públicas adequadas, o que se reflete na evolução normativa que culmina na lei 14.994/24.

Neste contexto histórico e normativo, a lei 14.994/24 representa um avanço significativo ao criar um tipo penal autônomo para o feminicídio, previsto no art. 121-A do Código Penal, abandonando a anterior sistemática que o considerava uma qualificadora do homicídio. Esta alteração simboliza o reconhecimento da especificidade e gravidade desta forma de violência contra a mulher, alinhando-se aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

A violência contra as mulheres no Brasil continua sendo uma questão alarmante, e a promulgação da lei 14.994/24, que integra o chamado Pacote Antifeminicídio, trouxe mudanças significativas no enfrentamento ao feminicídio e à violência doméstica. Todos os passos nessa luta já nos tiram do lugar, mas é preciso atenção, muita atenção.

Como disse Maya Angelou: “Eu levanto. Eu levanto. Eu levanto.” (Still I Rise, 1978). Essa frase ressoa com a luta das mulheres que, apesar das violências, continuam resistindo e reivindicando seus direitos fundamentais.

O novo tipo penal reflete avanços importantes na responsabilização dos agressores e também abre espaço para reflexões críticas sobre sua eficácia no combate às raízes estruturais dessa violência, como enfatizado por importantes nomes da doutrina penal e criminológica.

Assim, podemos afirmar que a principal alteração promovida pela nova legislação é a autonomização do feminicídio como crime específico, previsto agora no art. 121-A do Código Penal, com penas que variam de 20 a 40 anos de reclusão. Essa medida visa reconhecer a gravidade do feminicídio como uma manifestação extrema da violência de gênero.

Há muito, quando tivemos o primeiro contato com o termo “feminicídio”, alguns consideraram banalidade dar nome ao que já existia. No entanto, nomear é tirar algo do desconhecido e da invisibilidade muitas vezes impostas. Foi um avanço. Como dito, todo passo dado nos leva na direção do objetivo maior: o fim da violência contra a mulher. Mas é fundamental estar atento não apenas aos objetivos finais, mas também às causas do problema, especialmente quando estamos tratando de violência de gênero e doméstica.

O feminicídio, como tipo penal autônomo, apresenta uma estrutura delitiva complexa que transcende a mera proteção da vida humana. Sua objetividade jurídica é pluriofensiva, tutelando não apenas a vida da mulher enquanto bem jurídico primário, mas também a dignidade da pessoa humana sob a perspectiva de gênero e a igualdade material entre homens e mulheres como bens jurídicos secundários. Esta estrutura normativa reconhece que o feminicídio, mais que um homicídio qualificado, representa uma violação específica que atinge a mulher em sua condição existencial de gênero, afetando toda a coletividade ao perpetuar padrões históricos de discriminação e dominação.

A tipificação autônoma evidencia, portanto, uma tutela penal que ultrapassa a dimensão individual do direito à vida, alcançando uma dimensão coletiva ao proteger também a ordem social igualitária e não-discriminatória, constitucionalmente assegurada, especialmente quando consideramos as hipóteses de aumento de pena que visam proteger situações de especial vulnerabilidade, como a gestação ou o período pós-parto.

Noutra feita, o novo tipo penal do feminicídio apresenta uma estrutura singular quanto aos seus sujeitos. O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (crime comum), independentemente do gênero, desde que atue motivada pelas razões da condição do sexo feminino. Quanto ao sujeito passivo, a lei protege a mulher, devendo-se interpretar este conceito de forma ampla e inclusiva, abrangendo tanto mulheres cisgênero quanto transgênero. Esta interpretação, alinhada com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da não-discriminação, dispensa a necessidade de prévia alteração do registro civil ou realização de cirurgia de redesignação sexual para o reconhecimento da condição feminina da vítima.

Tal entendimento encontra respaldo na autodeterminação de gênero e na compreensão de que a violência de gênero se manifesta contra a mulher em sua expressão identitária, independentemente de alterações corporais ou documentais. Esta abordagem inclusiva reforça o caráter protetivo da norma e sua finalidade de combater a violência estrutural contra todas as expressões da identidade feminina.

Além disso, o Pacote Antifeminicídio introduziu agravantes específicas para casos de violência contra mulheres. Vejamos:

  • A prática durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto, ou se a vítima é mãe ou responsável por criança, adolescente ou pessoa com deficiência de qualquer idade;
  • Contra vítimas menores de 14 anos, maiores de 60 anos, mulheres com deficiência ou doenças degenerativas que acarretem vulnerabilidade física ou mental;
  • Na presença física ou virtual de descendentes ou ascendentes da vítima;
  • Em descumprimento de medidas protetivas de urgência;
  • Com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio cruel;
  • À traição, emboscada ou dissimulação, ou que dificulte a defesa da vítima;
  • Contra autoridades ou agentes da segurança pública no exercício de sua função ou em decorrência dela, ou contra seus familiares em razão dessa condição.

A nova lei ainda incluiu o feminicídio no rol dos crimes hediondos (inciso I-B do art. 1º da lei 8.072/90). Anteriormente, o feminicídio já era classificado como hediondo, todavia, na condição de qualificadora do homicídio comum.

Alice Bianchini, uma das maiores autoras no assunto, desde a publicação da lei 13.104/15 já afirmava que essa legislação “não trouxe uma nova qualificadora, mas buscou aclarar situações de violência que frequentemente permaneciam invisíveis nos processos penais envolvendo mortes de mulheres”. Conferir visibilidade à especificidade da violência de gênero é um passo essencial para consolidar dados que auxiliem na formulação de políticas públicas mais eficazes. Como citou Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres no Brasil: “O primeiro passo para enfrentar o feminicídio é falar sobre ele.”

A tipificação do feminicídio como crime autônomo representa um marco no reconhecimento do caráter sistêmico da violência contra mulheres. Essa mudança legislativa reforça o princípio da dignidade da pessoa humana no microssistema protetivo da lei Maria da Penha e da legislação que combate a violência de gênero.

Mulheres continuam morrendo no Brasil, em uma quase pandemia, porque o país não consegue efetivar suas políticas públicas para protegê-las. Não adianta termos a 3ª melhor legislação do mundo no tema e continuarmos a evoluir as penas previstas, sem uma estrutura de proteção eficiente. Continuaremos sendo o 5º país em números de violência contra a mulher.

A responsabilidade não é apenas do Estado, mas dele e de toda a sociedade. Sim, nós precisamos “meter a colher”, homens também precisam entrar nessa luta que é de todos os seres humanos.

A violência doméstica exerce um impacto devastador na vida da mulher, interferindo diretamente em sua capacidade de tomar decisões e de conduzir sua vida. A violência psicológica, que inclui humilhações, ameaças e manipulações, é apontada por Silvia Pimentel como uma das formas mais efetivas de controle, reduzindo a autonomia feminina e promovendo um ciclo de dependência emocional. Já a violência física, embora mais visível, afeta a saúde física e mental, comprometendo a capacidade da mulher de planejar um futuro independente.

Simone de Beauvoir já advertia em O Segundo Sexo: “Não se nasce mulher: torna-se mulher.” Essa frase ilustra como as mulheres, socialmente condicionadas, tornam-se mais vulneráveis a relações abusivas que perpetuam estruturas patriarcais.

Embora o endurecimento de penas seja um passo significativo, ele atua mais no momento pós-crime, o que evidencia um padrão recorrente na resposta estatal à violência de gênero: a prevalência do Direito Penal como instrumento principal de enfrentamento, em detrimento de uma política integral de prevenção e proteção. Esta abordagem, que prioriza a resposta punitiva, revela-se insuficiente quando não acompanhada de políticas públicas estruturantes.

A sentença da Corte Interamericana no caso “Campo Algodonero” já apontava que a responsabilidade estatal não se limita à repressão penal, mas abrange falhas sistêmicas na prevenção da violência de gênero. O mero recrudescimento da resposta penal, sem o correspondente fortalecimento das redes de proteção e prevenção, pode representar uma resposta simplista a um problema complexo e multifacetado.

A experiência da lei Maria da Penha demonstra que a efetividade do enfrentamento à violência de gênero depende de uma articulação entre medidas preventivas, protetivas e punitivas. A nova tipificação do feminicídio, ao elevar significativamente as penas – podendo alcançar 60 anos de reclusão com as causas de aumento -, não encontra correspondência em um fortalecimento proporcional das políticas de prevenção e proteção.

Esta disparidade entre o rigor punitivo e a fragilidade das políticas preventivas pode comprometer a efetividade da nova legislação. A ausência de investimentos adequados em delegacias especializadas, casas-abrigo, centros de referência e programas de autonomia econômica para mulheres em situação de violência representa uma falha estatal que não será suprida pelo mero agravamento das penas.

O caráter autônomo do tipo penal, apesar de necessário para visibilizar a especificidade do feminicídio, pode ter seu potencial preventivo limitado pela carência de uma política criminal integrada. A experiência internacional, especialmente a partir das recomendações da Convenção de Belém do Pará, indica que o sucesso no enfrentamento à violência de gênero depende de uma abordagem holística, que combine medidas penais com políticas sociais, educacionais e econômicas.

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