Violência vicária: o golpe que nos atinge onde mais dói, por Lize Borges

24 de abril, 2025 Conjur Por Lize Borges

Nos últimos anos, o termo “violência vicária” tem ganhado destaque nas discussões sobre violência de gênero, especialmente em países como a Espanha e em diversas nações da América Latina. O conceito foi cunhado pela psicóloga forense argentina Sonia Vaccaro e representa uma das formas mais cruéis e sofisticadas da violência de gênero: aquela em que filhos e filhas são utilizados como instrumentos para atingir a mulher.

A palavra “vicário” tem origem no latim vicarius, que significa substituto, ou aquele que ocupa o lugar de outro. Essa definição traduz esse tipo de violência, que consiste na agressão indireta contra as mulheres, em que os agressores, ao perder o controle sobre elas, voltam-se contra o que elas mais amam – seus filhos. Nesse contexto, as crianças tornam-se vítimas diretas de violência com o propósito de ferir emocionalmente as mães.

É importante distinguir a violência vicária da violência psicológica indireta que as crianças sofrem ao presenciarem as agressões contra as mães no ambiente doméstico. No caso da violência vicária, as crianças não atuam como espectadoras do sofrimento das mães, mas são alvos diretos de atos de violência do agressor, enquanto as mães, por sua vez, tornam-se vítimas indiretas.

Segundo Vaccaro, a violência vicária é “aquela que é exercida contra filhos(as), objetos, animais ou pessoas afetivamente significativas para a mulher, com o objetivo de machucá-la”. Em muitos casos, o agressor intensifica esse comportamento ao perceber que a mulher busca romper o ciclo abusivo, sobretudo quando decide se separar

A autora também ressalta que o agressor sabe que a parte mais vulnerável da mulher são suas filhas e filhos, e é exatamente por isso que direciona contra eles o ataque, buscando atingir o vínculo materno-filial, destruir emocionalmente essas mulheres e, por fim, manipular e capturar a criança como forma de reforçar seu domínio patriarcal.

À medida que novas leis e dispositivos de proteção foram surgindo para reduzir as desigualdades entre homens e mulheres, os agressores passaram a sofisticar suas estratégias de dominação. A violência vicária é, portanto, mais uma dessas formas, que atinge não apenas as mulheres, mas seus filhos, animais de estimação e pessoas diretamente expostas à instrumentalização de sua existência como forma de infligir sofrimento às mulheres.

Perpetuação do abuso

Essa realidade revela a lógica perversa que sustenta a violência vicária: mesmo quando afastados judicialmente das mulheres, os agressores utilizam os filhos como canal para perpetuar o abuso, seja através de manipulação, ameaças ou violência extrema. O reconhecimento jurídico dessa forma de violência é um passo fundamental no combate à sua perpetuação. Na Espanha, desde 2017, a violência vicária integra o Pacto de Estado contra a Violência de Gênero e é reconhecida como uma categoria jurídica autônoma. Além disso, o país reconhece as mães cujos filhos foram assassinados por ex-companheiros como vítimas diretas de violência de gênero.

O cenário da violência vicária se agrava quando instituições, especialmente os sistemas do Poder Judiciário, acabam sendo usadas para perpetuar esse ciclo. Frequentemente, há uma dissociação entre o comportamento do agressor como parceiro e como pai, o que leva, muitas vezes, à manutenção de direitos de guarda e convivência, mesmo após episódios graves de violência. Essa dissociação acaba permitindo que os agressores continuem a violentar mulheres e os filhos, muitas vezes, com o apoio de decisões judiciais que ignoram o contexto de violência.

Vaccaro alerta que se trata de uma violência que só se mantém possível graças à permissividade e à cumplicidade institucional, alicerçadas em uma cultura patriarcal que valoriza o exercício do “pátrio poder”, mesmo quando o pai é reconhecidamente agressor, em detrimento da proteção de crianças e adolescentes e do respeito à dignidade das mulheres. A simples condição de pai não pode justificar a manutenção da convivência quando há evidências de risco à integridade física ou psíquica das crianças.

Sinais de mudança

O ordenamento jurídico brasileiro caminha timidamente para compreensão de que marido agressor não é um bom pai ao prever no artigo 1.638 do Código Civil as hipóteses em que é cabível a perda do poder familiar, incluindo lesão corporal grave nos casos de violência doméstica e feminicídio contra a mãe, além de crimes contra a dignidade sexual. No entanto, é fundamental que essas previsões sejam aplicadas com rigor e que o Judiciário compreenda que o agressor que exerce violência contra a mãe dificilmente deixará de representar ameaça para os filhos. O comportamento abusivo não se restringe ao vínculo conjugal, mas revela um padrão de dominação e controle que afeta as mulheres e as crianças de forma contínua.

É sabido que, nos processos litigiosos, as decisões que versam sobre guarda e convivência da criança e do adolescente devem ser pautadas nos princípios do melhor interesse da criança, da proteção integral e absoluta prioridade, mas o que ainda se vê nos processos, em muitos casos, é a defesa cega da figura paterna e do poder familiar, em detrimento da proteção integral dos filhos, colocando as mulheres que denunciam tais violências como loucas, desequilibradas, alienadoras e incapazes ao exercício da maternidade.

Muitas mulheres se veem aprisionadas em longos processos litigiosos, nos quais o agressor se utiliza da justiça como mais uma ferramenta de abuso, prolongando disputas por guarda, visitação e convivência, com o objetivo de desgastá-las emocional, física e financeiramente. É a chamada violência processual de gênero, que consiste em um obstáculo ao acesso à justiça e pode corroborar com a violação de diversos direitos de mulheres, crianças e adolescentes.

No Brasil, embora o termo “violência vicária” ainda não seja amplamente utilizado no meio jurídico – sendo mais comum a utilização pela doutrina jurídico-feminista de expressões como “violência por procuração” ou “violência em substituição”, o cenário começa a apresentar sinais de mudança. O Projeto de Lei nº 3.880/2024, de autoria da deputada federal Laura Carneiro (PSD-RJ), ainda em tramitação, propõe incluir expressamente a violência vicária no artigo 7º da Lei Maria da Penha, como uma forma de violência doméstica e familiar contra as mulheres, cuja redação sugerida foi:

“Art. 7º …………………………………………
…………………………………………………….
V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria;
VI – a violência vicária, entendida como qualquer forma de violência praticada contra filho, dependente ou mesmo outro parente ou pessoa da rede de apoio da mulher visando atingi-la.” 

A proposta representa um avanço importante, ao reconhecer que o agressor se vale, muitas vezes, de lacunas legais e da própria estrutura patriarcal para continuar exercendo poder sobre as mulheres, mesmo após o término da relação, especialmente por meio de litígios envolvendo guarda e visitas, onde os filhos se tornam instrumentos de chantagem emocional.

Lei de Alienação Parental

Pesquisas realizadas nos Estados Unidos e Austrália demonstram que um dos principais exemplos de violência processual de gênero nas ações de família é a ameaça ou a efetiva busca pela guarda unilateral das crianças pelos pais. No Brasil, a violência processual possui uma importante aliada, a Lei de Alienação Parental, baseada em pseudociência, que vem sendo utilizada como estratégia de poder e controle nos processos de divórcio, guarda e convivência visando continuidade da violência contra mulheres, que antes era sofrida em casa e, a partir do divórcio, ganha um solo fértil no judiciário. Como bem adverte o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero de 2021 do Conselho Nacional de Justiça:

“Em relação à guarda das filhas e dos filhos, a alegação de alienação parental tem sido estratégia bastante utilizada por parte de homens que cometeram agressões e abusos contra suas ex-companheiras e filhos(as), para enfraquecer denúncias de violências e buscar a reaproximação ou até a guarda unilateral da criança ou do adolescente.”

Não por acaso o Comitê Cedaw, ao tecer as “Observações finais sobre o oitavo e o nono relatórios periódicos combinados do Brasil”, recomendou ao país a Revogação da Lei de Alienação Parental por entender que “tem sido utilizada contra mulheres que denunciam violência doméstica por parte do pai, resultando em estigmatização dessas mulheres e privação da guarda de seus filhos”.

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