Lipedema vira obsessão, mas o que a ciência sabe de fato sobre o tema?

16 de junho, 2025 AzMina Por Tereza Novaes

Embora a doença seja real, redes sociais banalizam assunto e muitos se aproveitam para vender tratamentos ineficazes

  • O lipedema é uma doença crônica pouco estudada, mas virou tendência nas redes sociais, gerando desinformação e venda de tratamentos sem comprovação;
  • Influenciadoras ajudaram a popularizar o tema, mas também reforçaram padrões estéticos e a medicalização da gordura, alimentando ilusões e inseguranças;
  • Embora faltem evidências sólidas, o diagnóstico clínico do lipedema pode trazer alívio. Porém, é essencial fugir de soluções fáceis e milagrosas.

A influenciadora Yasmin Brunet contou ter lipedema, em uma entrevista ao programa Fantástico (da TV Globo), em março de 2025. Trata-se de uma doença crônica que pode causar aumento desproporcional de gordura, principalmente na parte inferior do corpo. Atinge quase exclusivamente mulheres, tendo mudanças hormonais como gatilho.

O número de pesquisas pelo termo lipedema no Google cresceu vertiginosamente e ultrapassou até as buscas pelo nome de Yasmin, superando-a em dez vezes, no dia em que foi veiculada a reportagem do Fantástico.

No final de maio deste ano, havia 74 mil postagens marcadas com #lipedema no TikTok e 437 mil no Instagram. Boa parte dessas hashtags liga o lipedema a supostos tratamentos, alguns em âmbito hospitalar e outros caseiros, que envolvem desde chá, gelo e cremes, dietas cetogênicas (sem carboidrato) ou desinflamatórias, até cirúrgicos. Spoiler: nenhum deles tem eficácia comprovada.

Em postagem no Instagram, o endocrinologista brasileiro Bruno Halpern, presidente da World Obesity – Federação Mundial de Obesidade, advertiu que pessoas sem lipedema estão recebendo o diagnóstico, para que se possam vender tratamentos específicos. “Isso inclusive é prejudicial, pois alguns médicos passam a não ‘acreditar’ na condição, que é, sim, real.”

Dor e hematomas

O lipedema é uma doença caracterizada por mudança na textura da pele, dor e hematomas. Além disso, o problema fica restrito a uma parte do corpo, quando acomete as pernas, por exemplo, não chega aos pés.

Em pessoas com obesidade, o lipedema tende a ser mais grave, mas são condições diferentes, embora sejam relacionadas. Em geral, a gordura que forma o lipedema pode continuar mesmo com a perda de peso, portanto, reduzir calorias pode ajudar, mas não há garantia de resolvê-lo.

Há vários graus de acometimento e com diferentes impactos na qualidade de vida, que podem ser dores localizadas até limitações de movimento.

O lipedema se tornou uma trend, um prato cheio para a desinformação e o charlatanismo, como se fosse algo estético e comparável à celulite, inclusive pela mídia. É importante lembrar que embora seja natural no corpo feminino, a celulite é demonizada e bastante lucrativa para a indústria da beleza.

A endocrinologista Lusanere Cruz, chefe do departamento de lipedema da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso), deixa claro que são coisas completamente diferentes. “A celulite é uma lesão superficial, que não dói, e o lipedema, uma lesão maior do tecido adiposo, do conjuntivo e dos vasos, gerando equimoses, que são esses roxos pelo corpo.”

O lipedema está relacionado também a alteração de humor, frouxidão de ligamentos, alteração da marcha (na forma de andar) e até uma relação maior com doenças alérgicas e autoimunes.

Estudos ainda são escassos

A verdade é que o lipedema ainda é pouco conhecido pela ciência. Ele foi descrito pela primeira vez na década de 1940, e só ganhou um CID (Classificação Internacional de Doenças) em 2022. Mas faltam pesquisas de larga escala sobre o tema.

“Estamos acostumados com estudos populacionais muito grandes, com 17 mil, 10 mil pessoas. Os estudos de lipedema têm 250 ou 300 pessoas”, afirma Lusanere Cruz.

Isso fica evidente na PubMed, a maior base de dados online sobre medicina do mundo, que reúne mais de 38 milhões de citações e resumos da literatura biomédica. Na plataforma, há registro de apenas sete ensaios clínicos sobre lipedema. Ensaio clínico é uma investigação científica feita em humanos para avaliar segurança e eficácia de novos tratamentos.

Apenas quatro diretrizes que tratam de lipedema foram publicadas na PubMed, e elas são mais baseadas em consenso de profissionais do que em evidências científicas.

Para completar a falta de certezas sobre o lipedema, o seu diagnóstico é clínico, ou seja, é feito pelo médico por meio de avaliação dos sintomas e do histórico da paciente. Não existem  exames que identifiquem a doença, tornando ainda mais subjetiva a análise do quadro.

“Ao mesmo tempo que essa condição vem sendo mais reconhecida, há problemas: ainda não há tratamentos clínicos ou mesmo dietas específicas para lipedema, mas infelizmente muitos estão ‘vendendo’ protocolos e soluções que não são baseados em ciência”, escreveu Bruno Halpern no Instagram.

É a típica combinação explosiva da má-fé de alguns profissionais com o desespero de quem sofre com um problema.  Associada a um tema que ainda está sendo compreendido pela ciência, essa combinação chega a um paradoxo: agora mulheres que passaram a vida toda cercada de dúvidas podem entender melhor qual era sua condição, mas também são bombardeadas nas redes sociais por tratamentos pouco efetivos e algumas vezes muito caros.

Qual o papel das redes sociais na febre do lipedema?

“Sempre estamos de olho nesses procedimentos e diagnósticos que causam burburinho nas redes sociais. No último ano, acompanhamos o surgimento de grupos e comunidades de mulheres em torno do lipedema. Especialmente no TikTok, vemos mulheres postando rotina e tratamento de lipedema”, conta a doutoranda em antropologia social Camila Cavalheiro.

Por meio de seu grupo de pesquisa Ciências na Vida, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ela observa a movimentação sobre o lipedema e outros temas ligados ao corpo nas redes sociais.

Segundo a pesquisadora, as redes sociais ou se apropriam ou transformam isso em novos processos sociais, culturais, biológicos, que antes eram mais restritos.

Neste sentido, ela destaca a capacidade das redes sociais de aglutinar as pessoas em torno de um tema comum. “Às vezes, há uma sensação de ‘eu não estou louca’, há uma validação. Talvez esses grupos sejam o único espaço em que a pessoa sente sua queixa ser validada.”

Outro conceito que a pesquisadora evoca para entender a febre do lipedema nas redes é a medicalização. “Passamos a entender muitos aspectos da nossa vida a partir dessa lente, medicalizada e quase patológica. A gordura é um deles. Ela nem sempre foi entendida como um problema de saúde, e era inclusive sinal de riqueza e fertilidade.”

As redes têm um poder mobilizador que ainda não foi totalmente compreendido, como no caso do Ozempic. “Em 2020, quando ele foi lançado, havia um desafio no TikTok chamado Ozempic Challenge. Não fica claro se o laboratório produziu essa campanha. Mas existem dados que comprovam que o aumento das buscas no TikTok quase dobrou as vendas naquele ano.”

Nem mesmo as sociedades médicas – responsáveis por fazer a fiscalização do marketing médico – e as agências de fiscalização como a Anvisa e o FDA estão conseguindo dar conta de repensar esse novo fenômeno.

Por outro lado, ela afirma que não se deve demonizar as redes sociais, nem diminuir a importância desses diagnósticos. “No caso do lipedema, ele pode sim causar dor, sofrimento e sensação de cansaço. Assim como a obesidade, pode ter impactos muito negativos na vida das pessoas”, alerta Camila.

Conhecimento está em construção

“Conforme a evidência científica for sendo construída, vamos seguir. É como se fosse um GPS, se a gente sair da evidência científica, vamos aumentar o custo e indicar tratamentos que não são eficientes”, defende a endocrinologista Lusanere.

No tratamento clínico específico, segundo a médica, devem ser seguidas as recomendações criadas nos Estados Unidos (EUA), elaboradas por uma endocrinologista. “Há alguns aspectos de medicações e de posturas em relação à dieta, que precisa ser individualizada”, fala Lusanere. Ela reforça que não existe dieta específica para lipedema, embora sejam numerosos os “protocolos”, cardápios, treinos e tratamentos oferecidos pelas redes sociais.

Inclusive, os protocolos cirúrgicos também estão sendo construídos. “Na verdade, não há nenhuma ciência absoluta no lipedema. As evidências são muito pequenas, usamos as que existem”, esclarece a endocrinologista.

Lusanere afirma que hoje o tratamento recomendado para lipedema envolve perda de peso e, em alguns casos, pode ser necessário cirurgia plástica e sessões de laser. Há ainda o controle de outras doenças associadas, que levam ao aumento de gordura corporal. É um processo que leva tempo e deve ser encarado a longo prazo, como ocorre com outros problemas crônicos de saúde, a exemplo de diabetes ou hipertensão.

No Brasil, a doença é tratada por endocrinologistas, cirurgiões plásticos e vasculares. “O diagnóstico pode ser feito por essas três especialidades, mas o tratamento é multidisciplinar, já que a doença é multifatorial”, explica Lusanere.

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