A transfobia é incompatível com o feminismo negro e a luta antirracista, por Bruna G. Benevides

Vidas Trans Importam

Foto: Mídia Ninja

24 de junho, 2025 Portal Catarinas Por Bruna G. Benevides

Transfobia é um projeto político da extrema direita e não cabe em nenhum projeto de libertação.

Vivemos um momento em que a radicalização dos discursos transfóbicos é impulsionada por uma engrenagem internacional de retrocessos. Essa máquina, alimentada por grupos conservadores, religiosos e autoritários, que contam com forte apoio de feministas essencialistas e cisativistas transfóbicas, investe pesado numa agenda antitrans que se infiltra — disfarçada de discurso legítimo — até mesmo nos espaços que historicamente deveriam ser trincheiras de luta e acolhimento: os movimentos progressistas, feministas e antirracistas.

É nesse contexto alarmante de perseguição sistemática contra pessoas trans e travestis que se impõe, com urgência e sem concessões, a necessidade de escancarar uma verdade incômoda: a transfobia é absolutamente incompatível com o feminismo negro — como já afirmaram as Blogueiras Negras — e com qualquer projeto verdadeiramente comprometido com a justiça racial. Aderir a narrativas antitrans, especialmente quando articuladas por mulheres negras que se reivindicam feministas, não é apenas um desvio ético e político. É a reprodução — consciente ou não — das engrenagens do racismo estrutural. Nesse cenário, não há espaço para neutralidade.

Quando uma mulher negra politizada, letrada em gênero e na luta antirracista, se alinha a discursos que fragilizam direitos, geram cisões, marginalizam e negam a identidade de pessoas trans, ela está, paradoxalmente, alimentando a mesma máquina que criminaliza corpos negros, empurra travestis e mulheres trans — sobretudo negras — para as margens e lucra com essa exclusão, conquistando influência no ecossistema do ódio, hoje convertido em projeto político da extrema direita.

Essa contradição precisa ser nomeada. Mais do que isso: deve ser enfrentada com seriedade. Estamos diante de uma estratégia sofisticada que articula fundamentalismo religioso, essencialismo de gênero, conservadorismo estatal e neofascismo de mercado. Uma frente ampla antitrans vem se consolidando no Brasil e no mundo, acompanhando a ascensão extremista, autoritária e anti-direitos de políticos que fortalecem agendas que atacam minorias. Essa estratégia opera com um princípio simples: desumanizar para eliminar o que é considerado incômodo, abjeto e descartável.

Para parecer legítima, essa estratégia precisa de rostos diversos — e é aí que reside o perigo da adesão de mulheres negras, progressistas, feministas, mães e pensadoras a essa agenda. Sua presença acaba funcionando como um selo de legitimidade para narrativas excludentes, um grave atentado à história e às alianças que nossas lutas vêm construindo.

Como é possível defender a emancipação das mulheres negras e, ao mesmo tempo, atacar e negar a existência de mulheres trans negras? Que emancipação é essa que se baseia na exclusão de outras? Em nome de quem? Não se trata de um erro de percurso, mas de um desvio ético-político profundo.

Permitir que transfobia continue em ascensão dentro do feminismo negro e dos espaços de mulheres negras revela uma ferida aberta, que denuncia o quanto ainda precisamos avançar no pensamento contra-colonial e na compreensão de que a luta antirracista exige uma postura radicalmente expansiva e inclusiva. Não existe luta contra o racismo seletiva em relação às vidas negras que defende.

Isso evidencia que, apesar dos avanços em diferentes frentes, persiste uma resistência — muitas vezes velada, outras escancarada — à presença plena de travestis, mulheres trans negras e pessoas transmasculinas negras nas lutas feministas e antirracistas, assim como na proteção das infâncias. Essa exclusão, frequentemente sustentada por discursos que se escoram em disputas identitárias ou falsas universalidades, não só contraria os princípios de justiça e libertação que essas agendas afirmam, como também reatualiza os sistemas de opressão forjados pelo racismo e colonialismo.

Sistemas que, historicamente, impuseram visões restritas, normativas e seletivas sobre o que define uma mulher, sobre o significado político do corpo negro e quem tem legitimidade para ocupar espaços de fala e protagonismo. Manter essa lógica é, em sua raiz, sustentar uma violência epistemológica que insiste em apagar identidades dissidentes e corpos desviantes — especialmente os de mulheres negras, lésbicas, desfem, cis e trans, que continuam tendo sua mulheridade negada. Ao obliterar as existências trans negras e suas demandas legítimas, reafirma-se uma lógica excludente que delimita quem é digno de voz, escuta e pertencimento político.

O feminismo negro surge de uma ruptura radical e da reação à exclusão sistemática das mulheres negras nos feminismos brancos e à invisibilidade de suas pautas dentro do próprio movimento negro.

Em sua essência, é interseccional — reconhece que as opressões não atuam isoladamente, mas se entrelaçam e potencializam como bem nos lembra Angela Davis. Por isso, não se pode permitir reproduzir e corroborar outras formas de exclusão.

Quando uma mulher negra produz violências ou invalida a identidade de uma travesti ou mulher trans, nega o princípio fundante do feminismo negro: o enfrentamento radical de todas as formas de opressão.

Essa negação não é apenas simbólica — tem efeitos concretos e devastadores, sobretudo para as pessoas trans negras, que continuam entre as que menos acessam cidadania e direitos conquistados, e as mais violentadas, assassinadas e marginalizadas na sociedade.

Não é coincidência que os grupos que mais perseguem travestis e mulheres trans sejam os mesmos que financiam campanhas contra cotas raciais, negam o genocídio da juventude negra, defendem o encarceramento em massa e o armamento da população, e promovem políticas de morte nas periferias. Trata-se do mesmo projeto de sociedade.

Nesse contexto, a transfobia quando manifesta no campo progressista não é dissidência: é infiltração. Uma rachadura que precisa ser enfrentada com firmeza e urgência.

O silêncio da maioria dos movimentos feministas e antirracistas diante dessa chaga aberta é profundamente alarmante. A omissão diante das múltiplas violências contra pessoas trans, especialmente negras, por óbvio, se converte em conivência. Não há mais espaço para neutralidade, nem tempo para fingir que é possível construir um projeto de emancipação racial e de gênero que não inclua, de forma explícita e enfática, as pessoas trans. O mínimo esperado de um movimento comprometido com a justiça é (re)posicionar-se abertamente contra a transfobia e seus projetos de morte. O mínimo.

E precisamos ir além. É urgente que os movimentos feministas e antirracistas encarem com profundidade essa ferida ainda aberta, reconhecendo que a exclusão das pessoas trans escancara o quanto ainda precisamos avançar na revisão das práticas políticas. Porque, sim, a transfobia é ferramenta da colonialidade. Nossa ancestralidade africana não se estrutura na rigidez dos binarismos, nem se limita a padrões heterossexuais, cisgêneros e essencialistas.

Há uma imensidão de existências dissidentes que foram — e continuam sendo — demonizadas, perseguidas e criminalizadas como parte do legado colonial. Como sistema social, político e econômico fundado na patrulha, na opressão e no controle dos corpos, a cisgeneridade – assim como a branquitude – não é uma estrutura natural ou neutra, mas sim um projeto colonial. Trata-se de uma tecnologia de poder forjada para normatizar existências e garantir a reprodução de hierarquias que sustentam o privilégio cisgênero em detrimento das vidas trans e dissidentes de gênero.

Assim como o colonialismo impôs um modelo racializado de humanidade, a cisgeneridade consolidou-se como matriz reguladora dos corpos e das subjetividades, convertendo a diversidade de expressões de gênero em anomalias a serem corrigidas, patologizadas ou eliminadas. E tem sido o colonialismo que tem imposto a ideia de um corpo único, naturalizado, binário e normativo. Foi ele que classificou, hierarquizou e exterminou corpos que fugiam dessa norma.

Desconstruir a cisgeneridade, portanto, é confrontar um dos pilares centrais do colonialismo que ainda opera no presente, moldando políticas públicas, imaginários sociais e dispositivos institucionais de exclusão. Ignorar isso é escolher o lado errado da história. É negar a potência transformadora de reconhecer que a luta negra e a luta trans são, na verdade, uma só.

Por isso, é preciso um chamado à reflexão profunda. À autocrítica honesta. Que feminismo é esse que exclui outras mulheres para se afirmar a si mesmo? Que antirracismo é esse que se cala diante do extermínio de corpos trans negros? É urgente repensar esses posicionamentos antes que seja tarde demais.

Estamos num ponto de inflexão. A adesão de setores do feminismo negro à agenda antitrans não é apenas incoerência ideológica — é uma contradição e ameaça concreta à construção de uma sociedade verdadeiramente justa e diversa. É um erro que pode comprometer toda a estrutura das nossas lutas. Precisamos escolher: Ou estamos ao lado da vida, da pluralidade, da justiça e da dignidade de todos os corpos — ou reforçamos os mesmos mecanismos que historicamente nos oprimem. Não há meio-termo.

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