Uma disputa que ultrapassa a técnica
Em trâmite na Câmara dos Deputados, o Projeto de Decreto Legislativo nº 89/23 pretende sustar os efeitos da Resolução nº 492/23 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), norma que estabelece diretrizes para a atuação do Poder Judiciário na aplicação da perspectiva de gênero em julgamentos. O texto do PDL parte de uma premissa formal: a suposta extrapolação da competência do CNJ ao editar resolução que, segundo a justificativa parlamentar, invadiria a independência funcional dos magistrados.
No entanto, a controvérsia não se restringe ao debate sobre os limites regulatórios do CNJ. Ao determinar que o Judiciário leve em consideração as dinâmicas de poder baseadas em gênero ao decidir processos, a Resolução 492 toca em uma ferida sensível: o padrão histórico de julgamentos que, sob o pretexto de neutralidade, desconsidera completamente as desigualdades típicas de uma sociedade patriarcal.
A proposta legislativa que pretende sustar seus efeitos, por sua vez, opera como reação política a esse incômodo. O que se quer restaurar, sob a justificativa de preservar a “liberdade do juiz”, é um modo antigo e excludente de julgar, que ignora marcadores sociais de desigualdade.
Este artigo analisa a Resolução CNJ 492/23 à luz do princípio da igualdade, do dever de proteção estatal contra a violência de gênero e da jurisprudência internacional de direitos humanos. Em seguida, examina criticamente os fundamentos do PDL 89/23, demonstrando como a tentativa de sua aprovação representa não apenas um erro legislativo, mas um grave sintoma de resistência institucional à consolidação de um modelo democrático de justiça.
A Resolução CNJ 492/23: fundamentos, conteúdo e alcance
Publicada em 20 de março de 2023, a Resolução 492/23 consolida uma diretriz que já vinha sendo afirmada por diversos órgãos do sistema de justiça: a necessidade de incorporar a perspectiva de gênero no exercício da jurisdição. Com base em compromissos assumidos pelo Brasil em tratados internacionais – como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e a Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) —, a resolução impõe aos magistrados e magistradas o dever de considerar os impactos das desigualdades de gênero na produção da prova, no processo decisório e na compreensão dos fatos.
Ao contrário do que sustentam os críticos do normativo, não se trata de um documento opinativo ou ideológico. A Resolução 492/23 é uma política pública judiciária orientada por evidências empíricas sobre o padrão de revitimização institucional de mulheres, sobretudo em casos de violência doméstica, violência sexual, disputas de guarda marcadas por alegações de alienação parental, entre outros. No que se refere à violência doméstica, o relatório “O Poder Judiciário no Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar Contra as Mulheres” [1], elaborado, em 2019, pelo CNJ, conjuntamente com o Ipea, conclui que, apesar dos inúmeros avanços alcançados, subsiste “um longo caminho a percorrer para que este tipo de conflito seja administrado a contento nas unidades de justiça, garantindo-se um atendimento ao mesmo tempo tecnicamente apurado e mais humanizado, que não reproduza violências de gênero e dê respostas efetivas às expectativas de justiça das mulheres vítimas de violência”, situações essas que foram adequadamente enfrentadas pela Resolução 492/93 que o PDL 89 objetiva sustar.
Além disso, o CNJ, como órgão de controle e planejamento do Poder Judiciário, possui competência regulamentar assegurada pelo artigo 103-B da Constituição. Essa competência inclui a normatização de diretrizes administrativas e pedagógicas, com o objetivo de garantir maior uniformidade e efetividade na prestação jurisdicional. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (ADI 3.367/DF, ADI 4.638/DF) reconhece que o CNJ pode editar atos normativos que, embora não interfiram na função decisória do juiz, orientem a atividade jurisdicional com base em parâmetros constitucionais.
Assim, a Resolução 492/23 não impõe decisões de mérito, apenas determina que o julgamento considere as assimetrias de poder de gênero como um elemento relevante para garantir o acesso à justiça. Trata-se de um ato normativo secundário de caráter formativo, compatível com o modelo constitucional de justiça como ambiente de transformação social.
O PDL 89/23: a tentativa de restaurar a falsa neutralidade
A proposição do PDL 89/23 parte de uma lógica conservadora e tecnicamente equivocada. Ao alegar que a resolução do CNJ violaria o “livre convencimento motivado” dos magistrados, o projeto ignora que esse princípio, consagrado no art. 371 do Código de Processo Civil, não autoriza decisões arbitrárias ou descoladas dos deveres constitucionais do julgador. A independência judicial, nesse contexto, não é uma licença para desconsiderar desigualdades estruturais e, assim agindo, de perpetuá-las e fortalecê-las.
Mais do que um ataque à competência normativa do CNJ, o PDL 89/23 revela uma reação institucional contra a implementação da igualdade como norte jurisdicional. O que está em jogo não é a liberdade do juiz para decidir, mas a resistência à imposição de um filtro crítico sobre práticas judiciais que, ao se pretenderem neutras, reproduzem violências institucionais, simbólicas e discriminatórias.
É importante destacar que a Resolução 492/23 se insere em um movimento mais amplo de institucionalização de parâmetros interpretativos sensíveis ao gênero.
O STF e o STJ vêm se posicionado sobre questões de gênero em diversas decisões.
No STF destacam-se a ADPF 779 (que declarou inconstitucional a tese da legítima defesa da honra, por, dentre outros motivos, ofender a igualdade de gênero); a ADPF 1107 (que proíbe questionamentos sobre histórico de vida da mulher vítima de violência, por entender que perpetuam a discriminação, a violência de gênero e vitimiza duplamente a mulher) e a ADI 7490 (que considerou inconstitucional a limitação de ingresso de mulheres em concursos para a Polícia Militar e Corpo de Bombeiros de Goiás, garantindo que as nomeações ocorram sem limitações de gênero).
O STJ, por sua vez, traz inúmeras e importantes decisões no campo da violência de gênero no contexto da Lei Maria da Penha. É o que se verifica na AP 902, em que ficou assentado que “a violência de gênero contra as mulheres é um dos meios pelos quais a assimetria de poder estrutural e os papéis estereotipados são perpetuados. Imprescindível que o Poder Judiciário utilize as lentes de gênero na interpretação do direito”. Essa e outras decisões sobre gênero podem ser encontradas na publicação digital Visão do STJ – Julgamentos com Perspectiva de Gênero [2], lançada em 2024.
Sustar os efeitos da resolução é, portanto, contrariar a própria evolução das decisões da justiça brasileira.