Entre a brutalidade dos crimes e o silêncio do Estado, os feminicídios escancaram a face mais cruel da violência contra mulheres negras no Brasil
A escalada da violência contra mulheres no Brasil em 2025, especialmente na Bahia, revela um cenário de brutalidade crescente que se manifesta não apenas na frequência dos crimes, mas também em sua natureza íntima, simbólica e cruel.
Dados recentes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025 escancaram a complexidade da violência que atinge as mulheres negras, sobretudo na Bahia e em outros estados do Nordeste; e levantam questões urgentes: o que está por trás dos feminicídios? De que forma esses crimes revelam o reflexo sombrio das estruturas sociais brasileiras?
Em 2024, o número de feminicídios voltou a crescer e alcançou o maior patamar desde o início da série histórica, em 2015. Foram 1.492 casos, um aumento de 0,7% em relação a 2023, mantendo a escalada de assassinatos de mulheres motivados por sua condição de gênero. Na Bahia em 2024 foram registrados 106 casos, segundo a Secretaria de Segurança Pública (BA). Em 2025 até o final do mês de agosto foram registrados 60 casos de feminicídio na Bahia, segundo a Polícia Civil (BA).
O perfil das vítimas mostra o teor racista da violência: 63,6% eram mulheres negras; 70,5% tinham entre 18 e 44 anos; 8 em cada 10 foram mortas por companheiros ou ex-companheiros; e em 64,3% dos casos, o crime ocorreu dentro da própria casa.
Levantamento do Instituto Fogo Cruzado revela que, até a primeira quinzena de agosto de 2025, ao menos 29 mulheres foram vítimas de feminicídio ou tentativa de feminicídio com arma de fogo em 57 municípios do Brasil. Dessas, 22 morreram. Em comparação com o mesmo período de 2024, houve um crescimento de 45%. Naquele ano, das 20 baleadas, 12 morreram e 8 ficaram feridas.
Podemos considerar que o feminicídio é a expressão mais extrema da violência de gênero. Atingindo desproporcionalmente mulheres negras e brancas, o problema revela que a sociedade brasileira é marcada por estruturas racistas patriarcais.
Há uma cultura que naturaliza o controle sobre o corpo e a vida das mulheres, especialmente quando elas desafiam papéis tradicionais ou tentam romper relações abusivas. Essa cultura de controle está profundamente enraizada nos modos operantes masculinos que atravessam gerações, instituições e comportamentos cotidianos.
Dados da ONU revelam que, no Brasil, cerca de 60% dos feminicídios são cometidos por parceiros ou familiares. A intimidade entre vítima e agressor muitas vezes mascara a violência, dificultando denúncias e tornando o ciclo abusivo mais difícil de romper. A violência, nesse contexto, não é um desvio, é uma ferramenta de reafirmação do modelo familiar patriarcal, logo injusto e violento com as mulheres.
Retrato cruel do Nordeste: Mulheres Negras morrem mais
O Brasil é um território de guerra para mulheres negras. E, quando falamos da Região Nordeste, essa violência toma uma configuração mais profunda. As estatísticas são frias, mas os corpos que tombam carregam histórias de vida, sonhos e afetos interrompidos. O que temos diante dos olhos é um projeto de extermínio que se repete de forma brutal: o feminicídio como política de morte, sustentado pela conivência do Estado.
Em Ilhéus, no sul da Bahia, no dia 16 de agosto de 2025, Alexsandra Oliveira Suzart, 45 anos, Maria Helena do Nascimento Bastos, 41, e sua filha Mariana Bastos da Silva, 20, foram encontradas mortas em um matagal com marcas de facadas. O cachorro com quem passeavam foi deixado vivo, amarrado a uma árvore ao lado dos corpos. Alexsandra e Maria Helena eram professoras da rede municipal. Mariana era estudante universitária. Vidas dedicadas à educação e ao futuro foram interrompidas com requintes de crueldade.
Três dias depois, em Lauro de Freitas (BA), mais um feminicídio: Laina Santana Costa Guedes, 37 anos, contadora, foi assassinada a golpes de marreta pelo próprio marido, diante das filhas de 5 e 12 anos. A mais velha ainda foi espancada ao tentar salvar a mãe. Vizinhos descreveram a cena como um “banho de sangue”, testemunhando em desespero a brutalidade que se repete dentro das casas.
Em fevereiro deste ano, em Quixeramobim (CE), Natany Alves Sales, estudante do Instituto Federal do Ceará (IFCE), ao sair de um culto, foi sequestrada e brutalmente assassinada.
Em Itaueira (PI), Maria Victória Rodrigues, 15 anos, grávida, em junho de 2025, foi encontrada morta com perfurações, espancamento e sinais de estrangulamento. O principal suspeito era o seu padrasto.
Vitória Régia Ferreira de Lima, de 32 anos, mãe de quatro filhos, que trabalhava como babá e auxiliar de serviços gerais, foi assassinada em Solânea (PB) após recusar a reconciliação com o ex-namorado. O crime aconteceu na madrugada de 12 de junho de 2025, durante a Festa de Santo Antônio, quando o agressor subiu ao palco e a convocou para uma conversa diante do público. Vitória não compareceu, ele a perseguiu e, já próximo à casa da vítima, desferiu golpes de faca que tiraram sua vida.
Estes casos demonstram que a violência contra as mulheres, sobretudo as negras e pobres, não reconhece limites, não se intimida com o espaço público ou privado, não pode ser protegida a partir da religiosidade, e se encontra na noção absurda de que meninas e mulheres são de propriedade e controle de homens.
Mulheres Quilombolas: Mortas pela violência e pelo silêncio do Estado
Se nos espaços urbanos a violência contra mulheres negras se expressa em feminicídios brutais, nas comunidades quilombolas ela carrega ainda um agravante: a invisibilidade. A Bahia, estado com a maior população quilombola do país (Censo Demográfico 2022), não apresenta dados sistematizados sobre a violência que atinge essas mulheres. Essa ausência é parte da engrenagem de apagamento que faz parecer que a violência não existe nos territórios rurais e comunidades tradicionais, quando, na verdade, ela se manifesta em expulsões, ameaças, invasões, ataques armados e assassinatos.