Homens são maioria entre os atos consumados, mas quase 70% das tentativas no Brasil partem de mulheres. Desigualdade, violência de gênero e estigmas dificultam a prevenção
Na maior parte do mundo, os homens lideram as estatísticas de suicídio. No Brasil não é diferente. Entre 2017 e 2023, o Ministério da Saúde registrou 102.081 ocorrências, sendo os homens responsáveis por 78% desses casos.
Esse cenário, porém, muda quando o foco está nas tentativas. Em 2023, o país registrou mais de 186 mil casos de lesões autoprovocadas. É o equivalente a 30 internações por dia, segundo um levantamento da Associação Brasileira de Medicina de Emergência com base em dados do SUS. As mulheres foram maioria: quase sete em cada dez registros envolviam elas.
Mesmo assim, o fenômeno ainda é frequentemente associado ao universo masculino. Já o número expressivo de tentativas femininas permanece em segundo plano.
O psicólogo e psicanalista Felipe de Baére, que se debruçou sobre a relação entre gênero e comportamento suicida em seu mestrado pela Universidade de Brasília, aponta que esse viés cria o que ele chama de hombrificação do fenômeno. O apagamento dificulta que campanhas e políticas públicas deem a devida atenção ao problema.
As estatísticas mostram que mulheres tendem a recorrer a métodos menos letais, influenciadas inclusive por questões culturais ligadas à estética e à preservação da aparência, enquanto os homens usam com maior frequência formas mais violentas.
Diferenças de gênero no suicídio
Fatores de gênero desempenham um papel importante nos suicídios. De acordo com de Baére, relações conjugais opressoras e o peso simbólico dos relacionamentos amorosos foram citados em sua pesquisa como gatilhos frequentes para tentativas femininas, sobretudo em situações de término.
Já quando o recorte é masculino, o problema não costuma ter o contorno afetivo, mas a forma como os homens são ensinados a lidar com emoções e fragilidades. “O fato de desde cedo eles serem pedagogizados sob a perspectiva de que devem ser fortes e não demonstrar fragilidade faz com que muitos sejam refratários ao cuidado com a própria saúde”, explica. Como resultado, eles tendem a procurar ajuda apenas quando a situação já é grave.
Outro ponto levantado pelo psicólogo é o risco de reduzir o suicídio apenas ao diagnóstico de transtornos mentais. O pesquisador pertence a uma corrente chamada suicidologia crítica e lembra que “nenhum sofrimento psíquico se manifesta apartado da cultura e da sociedade”.
Embora depressão e outros quadros estejam presentes em parte dos casos, fatores como desigualdade, pobreza e violência de gênero também precisam ser considerados. “A última grande pesquisa da OMS mostrou que 80% dos óbitos por suicídio ocorrem em países de baixa e média renda”, aponta. “E as taxas mais altas se encontram nas populações minorizadas.”
Para o psicólogo, campanhas com frases como “valorize a vida” são simplistas e não atingem o cerne do problema. Medidas coletivas, como ampliação da rede de creches, apoio à progressão de carreira e maior autonomia financeira para mulheres, podem se tornar fatores de proteção à saúde mental. Quanto menor a vulnerabilização decorrente do machismo, menores também os riscos associados às tentativas de suicídio.
Na sociedade brasileira, para de Baére, a mulher que tenta ou consuma o suicídio enfrenta uma camada extra de estigma. Além da condenação moral associada ao ato em si, há também a quebra das expectativas de feminilidade e maternidade, que desde cedo colocam sobre elas o dever de cuidar do outro.
Com tudo isso, o ato se torna ainda mais carregado de tabus. “A mulher que tira a própria vida transgride não apenas um ideal moral, mas também o ideal de feminilidade. É uma dupla transgressão”, afirma.