Norte: insuficiência de serviços de aborto legal deixa milhões de mulheres desassistidas

03 de outubro, 2025 Portal Catarinas Por Catarina Barbosa

As barreiras geográficas, estigmas e omissões dos Estados põem em risco pessoas com útero que têm direito de acessar o procedimento.

  • Aborto legal quase inexistente no Norte: apenas 11 dos 40 serviços cadastrados confirmaram o atendimento. Meninas vítimas de estupro são desassistidas e não recebem informação;
  • Distância e descaso matam: em cidades remotas, o acesso ao aborto legal exige até 34 horas de viagem. O boicote institucionalizado agrava a violência contra quem mais precisa;
  • Estigma, medo e omissão do Estado: falta formação, protocolos e informação. Mulheres enfrentam julgamento, isolamento e riscos à vida por um direito já garantido por lei.

No Norte do Brasil, 40 serviços de aborto legal estão cadastrados na base de dados do DataSUS, mas em apenas 11 destes o atendimento foi confirmado pela Secretaria Estadual de Saúde ou pelo próprio serviço. Entre as unidades cadastradas, duas negaram a realização do procedimento em ligação telefônica feita pela equipe do Mapa do Aborto Legal. Esta é a realidade de acesso à saúde em uma região que concentra sete dos dez municípios com maior taxa de fecundidade entre meninas de 10 a 14 anos no país (com nascidos vivos registrados), como mostrado no projeto Meninas Mães d’AzMina.

Todas essas meninas que se tornaram mães foram vítimas de estupro de vulnerável, como o Código Penal define qualquer relação sexual com menores de 14 anos, independentemente de vínculo afetivo ou suposto consentimento. O acesso ao aborto legal deveria ter sido garantido, mas muitas vezes elas sequer são informadas dessa possibilidade. É o caso de Elza*, moradora da zona rural de Assis Brasil, interior do Acre, que engravidou aos 13 anos. Aos 16 anos, a adolescente foi entrevistada pela equipe d’AzMina que visitou a cidade no primeiro semestre deste ano.

Quando descobriu a gravidez, Elza foi incentivada pelo parceiro a abortar. Ele logo desapareceu e a menina ficou confusa, então acabou começando o pré-natal e não foi informada do direito ao aborto legal. No decorrer das consultas, ela disse que não queria seguir com a gestação, mas foi desencorajada e amedrontada por um enfermeiro, que chegou a dizer que ela poderia morrer se interrompesse a gestação, desconsiderando todos os riscos que a Elza corria ao levar a gravidez a termo.

Hoje, uma menina de Assis Brasil (AC) que precise fazer um aborto legal teria de viajar até Rio Branco, capital acreana, onde está o único serviço cadastrado no CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde). Uma viagem de aproximadamente 5 horas de carro, mas que chega a 10 horas quando feita de ônibus.

Assis Brasil tem a terceira maior taxa de fecundidade entre meninas de 10 a 14 anos de todo o país. Uiramutã (RR), Itacajá (TO), Jacareacanga (PA), Tocantínia (TO), Goiatins (TO) e Alto Alegre (RR) são os outros seis municípios da região Norte presentes no ranking das dez maiores taxas de fecundidade da faixa etária destacada. Nenhum deles tem serviços de aborto legal.

Capitais também apresentam barreiras ao aborto legal

A dificuldade de conseguir informações se repete também nas capitais do Norte, até mesmo dentro das unidades que realizam o procedimento, como é o caso da Santa Casa do Pará, em Belém. Crissia Cruz, mestre em psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), desenvolveu lá sua pesquisa de mestrado sobre violência sexual e aborto legal. Crissia identificou que entre setenta médicos do corpo clínico, apenas três ou quatro aceitavam atuar com aborto legal. Ou seja, menos de 6% dos profissionais.

A maioria dos médicos alegava objeção de consciência, prevista no Código de Ética Médica. A norma garante o direito de não realizar procedimentos que contrariem seus princípios morais, éticos ou religiosos. Mas, como explica a pesquisadora Crissia, atualmente pós-doutoranda na Universidade de Brasília (UNB), esse direito “não é irrestrito”. Quando se nega, o profissional tem a obrigação de encaminhar a paciente a outro médico.

A recusa não é sempre religiosa. Crissia aponta o estigma do aborto como o maior obstáculo. Médicos que atuam no programa recebem apelidos pejorativos, como “médico aborteiro”. Ela mesma foi chamada de “a menina do aborto”. Isso gera medo, isolamento e insegurança entre os profissionais.

Segundo maior estado em extensão territorial no Brasil, ficando atrás apenas do Amazonas, o Pará conta com serviço de aborto legal em 14 dos seus 144 municípios. Quem sai de Altamira até os serviços mais próximos, por exemplo, enfrenta pelo menos seis horas e meia de viagem para Santarém, Itupiranga ou Porto de Moz.

Boicote institucionalizado e rede pulverizada

Em outros estados da região, o cenário é ainda mais desafiador. No Amapá, por exemplo, quem vive em Oiapoque precisa viajar por quase 9 horas até a capital Macapá, único município do estado com serviço cadastrado. Em alguns casos, o deslocamento depende de rios e pode durar dias. Um exemplo é o município amazonense de Tabatinga, cujo serviço mais próximo — em Tefé — só pode ser alcançado de avião ou após 34 horas viajando de barco.

Para Crissia Cruz existe um “boicote institucionalizado” e uma política de omissão do Estado no que diz respeito à formação de profissionais aptos a garantir o acesso ao aborto legal. O serviço de interrupção da gestação na Fundação Santa Casa do Pará não é sequer divulgado no site do hospital.

“A população não procura o que não sabe que tem direito”, alerta a pesquisadora.

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