Ser mulher em um sistema que nos odeia, por Djamila Ribeiro

28 de novembro, 2025 Folha de S. Paulo Por Djamila Ribeiro

  • Catarina Kasten tinha vínculos, projetos e afetos
  • O Brasil registra 227 estupros por dia, número que vem crescendo ano após ano

Começo esta coluna prestando minhas homenagens, com a mais absoluta tristeza e consternação, à família, às amigas e às colegas de Catarina Kasten, 31, vítima de violência sexual seguida de morte em Florianópolis na última semana.

Aos que a amavam, fica um vazio impossível de traduzir em palavras. Às mulheres de todo o país, fica a indignação. Uma mulher teve sua vida arrancada de forma brutal, e o Brasil amanheceu cinza, com mais um nome que se soma à longa lista de mulheres mortas por serem mulheres.

O que se espera agora é responsabilização efetiva e investigações completas. As informações já divulgadas pela polícia indicam que o suspeito do crime, um homem branco de 21 anos de idade, também é investigado por outro estupro, cometido contra uma mulher de 69 anos, há dois anos. Cabe à polícia e ao Ministério Público a tarefa de examinar com rigor seus últimos anos, apurando possíveis reincidências e falhas institucionais que permitiram que a violência acontecesse e, o que seria ainda pior, se repetisse.

Contudo, poderíamos nos contentar apenas com a prisão desse criminoso e com a apuração de outros crimes sexuais que ele tenha cometido? Damo-nos por satisfeitas com esse desfecho? A resposta é não.

Há um movimento de mulheres que lutam para que tragédias como essa, infelizmente tão comuns neste país, se transformem em memória, reflexão e ruptura com a indiferença. Catarina tinha vínculos, projetos e afetos. Era professora de inglês, aluna do mestrado em linguística na Universidade Federal de Santa Catarina, praticante de surf e natação.

Sonhava em construir uma casa na praia dos Açores, no sul da ilha, onde havia comprado um terreno com seu companheiro, e planejava seu doutorado fora do Brasil, que agora perde mais uma cientista para a misoginia que insiste em reificar.

Em luto, durante a semana, mulheres marcharam pela trilha onde Catarina foi encontrada e encantaram seu nome como presença, como quem costura sua ausência onde o esquecimento não alcança. É dizer que esta história importa e que esta mulher não será engolida pela pressa burocrática de quem quer “resolver” logo essa tragédia, como algo atípico que se passou.

Segundo o Mapa da Segurança Pública de 2025, o Brasil registra 227 estupros por dia, número que vem crescendo ano após ano. Homens de todas as camadas sociais violentam mulheres. Diante disso, é obsceno que homens ainda se sintam autorizados a dizer às mulheres como devem se vestir, por onde devem andar, a que horas devem voltar, que riscos deveriam ter evitado.

É um acinte que obriguem as mulheres a gestarem o resultado do estupro, que imponham obstáculos para acesso ao aborto legal. Ainda que carreguem a Bíblia nas mãos enquanto o fazem, isso nos parece diabólico.

Nesta última terça-feira, 25, foi o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres. Em um contexto como o nosso, a data deve existir não para homenagens frias ou campanhas publicitárias pontuais, mas sim porque mulheres continuam sendo estupradas, assassinadas, agredidas e humilhadas todos os dias. O luto que atravessa a família de Catarina é o mesmo que atravessa milhares de mulheres anônimas, todos os anos, em todas as cidades deste país.

É uma data que deve marcar a percepção concreta do que significa ser mulher em um sistema que as odeia e de como isso atravessa a saúde mental, o bem-estar, o trabalho, a remuneração, as relações domésticas; como isso impacta a forma como mulheres são retratadas e representadas na cultura de massa, na política institucional, nos espaços de decisão. É também o retrato de como suas demandas por direitos são sistematicamente adiadas, relativizadas, desacreditadas e engavetadas.

Na trilha onde mulheres se manifestaram por Catarina, muitas estavam em choque e exaustas. Era impossível não reconhecer que o que aconteceu com ela poderia ter acontecido com qualquer uma que por ali passa. Aquele é um lugar por onde pessoas caminham, vão à praia, integram-se à natureza em busca de sossego e bem-estar. E, mesmo naquele refúgio, a violência se impôs.

A constatação de que nenhum lugar é seguro para as mulheres é muito dura e tem reflexos no psicológico. Estar em alerta o tempo todo não faz bem a ninguém e é preciso se rebelar ante um sistema que não deseja que mulheres aproveitem a natureza, o silêncio, a companhia das matas.

Por isso, me solidarizo com cada mulher que, mesmo atravessada pelo medo, pela indignação e pela dor, continua de pé. Que vá à praia, que reivindique a trilha, o corpo e o mundo como seus. Que guarde lembranças felizes com Catarina. Que continue, por todas nós, pois resistir, neste país, tem sido mais do que viver. Tem sido insistir.

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