(Correio Braziliense) Ela é maior de idade, independente, vacinada, mãe de um garoto de 8 anos, trabalhadora e paga as próprias contas. Aos 31 anos, a analista de comunicação Janaína Rochido acreditava que, adulta, era dona do próprio nariz. Mas descobriu recentemente que, para tomar decisões sobre parte de seu corpo, ela ainda não tem tanta autonomia, pelo menos aos olhos da legislação brasileira. Durante uma consulta de rotina ginecológica, ao perguntar sobre o procedimento de laqueadura, ouviu a resposta categórica da médica: “Você não pode fazer essa cirurgia por ser solteira e não ter um marido que autorize a decisão com você”. A frase atordoou a paciente, que logo questionou: “O corpo é meu, mas é o meu marido quem decide?”. A especialista, de mãos atadas, foi direta: “É a lei brasileira”.
Apesar de as famílias do Brasil já terem mudado de cara e conceitos, a lei que rege o planejamento familiar no país é de 1996 e só autoriza a esterilização em homens e mulheres acima de 25 anos ou que tenham pelo menos dois filhos. Para ambos, é exigido o consentimento dos cônjuges. “Sempre me preocupei em prevenir outra gravidez, uso métodos (contraceptivos), mas queria me informar sobre a laqueadura por achar mais seguro. Acabei esbarrando em uma legislação com 16 anos de existência e que está em vigor em um momento em que o país já sofreu significativas mudanças familiares. Eu, solteira, sã, trabalhadora e maior de idade só posso decidir que não quero mais filhos se tiver um marido que concorde com isso?”, questiona Janaína, que, indignada, publicou a história em seu blog, atraindo 2 mil acessos e provocando uma discussão que envolveu mulheres e homens contra e a favor da exigência.
Apesar de ter sido novidade para muitos, essa polêmica já chegou a Brasília. Um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, de autoria do deputado Paulo Rubem Santiago (PDT-PE), quer modificar a legislação por achá-la atrasada demais para a realidade do país. “Há menos de um ano, uma trabalhadora rural de Pernambuco, com oito filhos e problemas de saúde, decidiu fazer laqueadura, mas o marido não autorizou e insistiu que ela engravidasse mais uma vez. Ela engravidou e acabou morrendo, assim como a criança”, conta o parlamentar, que diz ser a favor dos homens e mulheres terem liberdade sobre o próprio corpo. “Nossa proposta acaba com essa exigência de que o cônjuge tenha que autorizar. A pessoa é senhora da sua condição reprodutiva”, defende. Ele aponta que, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), uma lei como a atual é um perigo principalmente para a saúde da mulher. “Sabemos que há muito machismo e a mulher acaba se tornando refém do homem”, comenta.
Opinião compartilhada pela assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria Kauara Rodrigues, que considera a alteração mais do que necessária. “A legislação demonstra que vivemos em uma sociedade conservadora, com valores patriarcais. É preciso uma mudança para que haja um diálogo com a realidade de hoje. O conceito de família não se restringe mais a homem, mulher e filho”, critica, certa de que para os homens há mais facilidade em conseguir o procedimento de esterilização sem a autorização de uma mulher.
O Correio Braziliense/Estado de Minas testou a diferença. Em muitas clínicas de urologia em Belo Horizonte não se exige o consentimento da parceira para a realização da vasectomia. O reportagem entrou em contato com uma dessas clínicas e, passando-se por um jovem de 31 anos, pai de uma criança (as mesmas condições de Janaína Rochido), perguntou sobre o procedimento de esterilização e foi informada de que tudo é muito simples, bastava fazer uma consulta, preencher um formulário e a cirurgia seria no mesmo dia. “Se você é solteiro, não precisa de consentimento de nenhuma parceira”, explicou a atendente.
A discrepância, segundo afirma o advogado e professor de direito civil da Universidade de Sorocaba (PSP) e da Faculdade de Direito de Sorocaba (SP) Emerson Alexandre Molina, está na maneira como é feito o procedimento cirúrgico em cada caso. “A linha de raciocínio perante a lei deveria ser a mesma, mas, na prática, o homem tem mais facilidade em fazer uma vasectomia porque a cirurgia não tem tanto nível de formalidade, pode até ser feita em ambulatório. Já a mulher tem que ir a um hospital, onde a legislação vai ficar mais evidente”, compara, reconhecendo que a lei deve passar por mudanças.
“Os solteiros sempre terão dificuldades para a esterilização e o medo dos médicos é de os pacientes se arrependerem. Mas, hoje em dia, as famílias não têm como único objetivo a procriação”, diz. Ele afirma que o planejamento familiar é um direito da mulher, independentemente da existência de um casamento.
Segundo Márcia Rovena de Oliveira, ginecologista e obstetra da área técnica da Saúde da Mulher da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais, tudo isso é questão de interpretação da lei pelos médicos. “A legislação não diz que solteiros não podem fazer a esterilização, somente exige a assinatura dos cônjuges, ou seja, um consentimento do parceiro caso a pessoa o tenha. A lei não fala que é preciso ser casado”, diz, contando que, pelo SUS, somente em 2011, foram feitas 9.526 laqueaduras em Minas Gerais. “Como a vasectomia pode ser feita em ambulatórios, os dados que temos estão subestimados. Foram 1.277 cirurgias em homens no ano passado, mas esse número se refere apenas aos que fizeram o procedimento em hospitais. Por isso, certamente há mais”, afirma.
Cautela
Na opinião da vice-presidente do Comitê de Ginecologia Endócrina da Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia de Minas Gerais, Hérica Cristina Mendonça, a opção pela esterilização deve ser bem pensada. “Hoje, há métodos alternativos para prevenir a gravidez. Então, por que apelar para algo tão mutilador? As exigências têm que ser cumpridas para que não haja arrependimento. Mas se a pessoa é solteira, não há importância de ela assumir essa decisão, mas as chances de arrependimento são grandes e o médico não tem que ser conivente. Por isso, é preciso muito cuidado antes de tomar a decisão”, alerta.
O que diz a lei
Lei nº 9.236, de 1996
» Os procedimentos só podem ser feitos em homens e mulheres maiores de 25 anos ou com pelo menos dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamentos, visando desencorajar a esterilização precoce.
» É permitido o procedimento em caso de risco à vida ou à saúde da mulher.
» É proibida a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores.
» A esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges.
Leia em PDF: Mulheres ainda precisam de autorização do cônjuge para cirurgia de ligadura (Correio Braziliense – 31/05/2012)