(Folha de S.Paulo) Depois de tornar-se o primeiro país do Cone Sul a descriminalizar o aborto, o Uruguai poderá, em breve, aprovar leis para legalizar a maconha e oficializar a união civil entre homossexuais.
Essas propostas, patrocinadas pelo presidente José “Pepe” Mujica, têm despertado a simpatia de setores liberais e de esquerda, que veem na nação meridional um exemplo para a América do Sul.
São decisões corajosas, não há dúvida, mas é preciso atentar para as peculiaridades uruguaias antes de concluir que sirvam para todos.
Trata-se, como se sabe, de um país pequeno, cuja população, de 3,4 milhões de habitantes, equivale à da zona leste da cidade de São Paulo. Diferentemente desta, porém, tem bom nível de educação e renda. O Uruguai ocupa o 48º lugar no ranking de desenvolvimento humano da ONU; o Brasil é o 84º.
Os vizinhos do sul possuem longa tradição secular e foram pioneiros em matéria de direitos civis. Lembre-se, a esse respeito, que o país aprovou o divórcio em 1907 e foi um dos primeiros nas Américas a conceder o voto às mulheres.
A influência da Igreja Católica sempre foi menor do que em outras ex-colônias espanholas. Ainda no século 19, depois da independência conquistada em 1828, prosperaram ideias anticlericais e surgiram medidas como a remoção de crucifixos de hospitais e a obrigação do casamento civil antes do religioso. O ensino de religião foi proibido nas escolas públicas, e a Constituição de 1918 já consagrava a separação entre Igreja e Estado.
Do ponto de vista demográfico, também assumiu precocemente feições de país desenvolvido. No fim da década de 1920, já começava a transitar para um quadro de estabilização das taxas de natalidade e mortalidade.
Essas características permitem ao Uruguai ser uma espécie de laboratório liberal na região. É prudente, todavia, acompanhar os desdobramentos dessas medidas, que têm aspectos problemáticos.
No caso da lei do aborto, por exemplo, a exigência de que as mulheres se submetam ao crivo de três especialistas e passem por um período de “reflexão”, além de discutível, parece difícil de ser cumprida. Além disso, há médicos que reivindicam o direito de recusar o procedimento por objeção de consciência.
Por fim, um referendo poderia dar mais solidez à decisão -e já há pressões políticas nesse sentido.
Quanto à legalização da maconha, a ideia de estatizar o plantio e a distribuição soa extravagante e precisa ser testada para que se possa formar um juízo definitivo.
Acesse em pdf: Kit uruguaio, editorial (22/10/2012)