(O Estado de S.Paulo) A Defensoria Pública tenta reverter uma decisão judicial que determinou a realização de laqueadura em uma mulher de 27 anos, sem filhos, moradora de Amparo, no interior paulista. A sentença, de 2004, da juíza Daniela Faria Romano, veio após uma ação protetiva do Ministério Público Estadual, que levou em consideração o perfil socioeconômico e o fato de a mulher sofrer retardamento mental moderado para pedir a esterilização. Atualmente, ela tem namorado fixo. E sempre manifestou o desejo de, um dia, ser mãe.
Desde que foi alvo da decisão judicial, a mulher se submeteu a um tratamento contraceptivo, tomando injeções e usando um dispositivo intrauterino (DIU) para evitar a gravidez. Foi a forma encontrada para evitar a cirurgia. O DIU venceu no ano passado e a paciente se recusou a substituí-lo, por temer que seja feita a laqueadura durante o procedimento.
Diante da recusa da paciente em substituir o DIU, a juíza Fabiola Brito do Amaral, que cuida atualmente do caso, determinou em outubro que fosse cumprida a sentença de 2004. A laqueadura estava prevista para o dia 21 de dezembro, mas a mulher não foi encontrada, porque se escondeu em outra cidade, por temer que a encontrassem e fizessem a cirurgia que a impediria de se tornar mãe. Uma nova data será marcada para o procedimento.
Em 2004, não houve recurso e a decisão já transitou em julgado, dificultando qualquer manobra jurídica para contestá-la. Mesmo assim, a Defensoria Pública considerou absurda a sentença e apontou que ela contraria a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, da Organização das Nações Unidas (ONU).
“Ela é capaz segundo a lei e, mesmo que não fosse, os incapazes têm direito às escolhas existenciais de suas vidas. A esterilização sem critério não encontra fundamento. Na realidade, faz relembrar medidas drásticas de épocas não democráticas. Esterilização por pobreza ou por deficiência mental moderada não deve acontecer. Desrespeita a lei do planejamento familiar”, disse a coordenadora assistente do Núcleo de Direitos Humanos, Daniela Skromov.
A defensora pretende acionar a Justiça em Amparo formalmente, por meio de uma petição, na tentativa de reverter a decisão que, na prática, condenou a mulher à esterilidade. “Isso ofende a dignidade da pessoa, ainda mais por ela não ter um filho e manifestar o claro desejo de algum dia tê-lo. Ter filho não é privilégio dos normais, senão se parte para a eugenia.”
No decorrer do processo, a mulher demonstrou angústia, ansiedade e medo de passar pela esterilização, contra a qual se manifestou todas as vezes em que foi questionada pela Justiça. Ainda em 2004, ela disse que “mais para a frente”, quando arrumasse um “namorado bom”, pretendia ter um filho. Também afirmou que não era “uma cachorra para ser castrada”. Parentes da mulher afirmaram que ela sempre teve uma disposição natural para cuidar de crianças.
Justiça. Promotor que responde atualmente pelo caso, Rafael Belucci afirmou que precisa saber em que circunstância se deu a decisão na época e que não tinha os detalhes do processo no momento. “Existem novos documentos que foram juntados pela equipe de saúde do município que vão ser analisados para saber da real necessidade da aplicação dessa medida.”
O Tribunal de Justiça de São Paulo informou que as magistradas responsáveis pelo caso estão legalmente impedidas de se manifestar, pelo fato de o processo “tratar de interesse de incapaz e de dignidade humana, com trâmite em segredo de Justiça”. Segundo o TJ, a magistrada que assumiu o processo atualmente “está apenas procurando cumprir a decisão judicial com trânsito em julgado referente à proteção da incapaz”.
Direito de pessoa com deficiência ter filhos deve ser respeitado
Tema foi abordado em reunião internacional no ano passado que trata do fim da discriminação contra as mulheres
O papel do Ministério Público seria o de zelar pelos direitos reprodutivos da mulher com deficiência e não de pedir à Justiça o cerceamento desse direito. Essa é a opinião da cientista política Telia Negrão, relatora da sociedade civil brasileira na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw, na sigla em inglês), da Organização das Nações Unidas (ONU).
Para ela, o Estado e a sociedade devem garantir que uma mulher com deficiência que queira ser mãe tenha políticas públicas de assistência e educação à altura de suas necessidades nos cuidados com o filho. “Tenho acompanhado a história de casais com síndrome de Down que desejam ter filhos, casam-se e, com a ajuda e a proteção da família, do Estado e da comunidade, conseguem realizar o desejo de constituir uma família”, diz Telia.
O direito das mulheres com deficiência foi um dos temas discutidos na última reunião mundial da Cedaw, em fevereiro de 2012.
De acordo com Telia, uma das grandes denúncias feitas pela Aliança Internacional das Pes-soas com Deficiência se refere aos direitos reprodutivos das mulheres com deficiência. “Se nós temos toda uma luta antiga para a reafirmação da autonomia das mulheres quanto aos direitos reprodutivos, as mulheres com deficiência têm uma defasagem histórica de 40 anos de luta por esses direitos”, diz.
A gerente da área de Proteção e Defesa de Garantia de Direitos da Apae de São Paulo, Marilena Ardore, lembra que Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, ratificada pelo Brasil, aborda especificamente o direito de constituir família. “Nós, da Apae, temos casos de jovens, casados na Igreja ou unidos informalmente, que formaram uma família, têm dois ou três filhos e vivem bem. Claro que existe o apoio da família: mãe, pai, avô e avó”, diz.
A advogada Sandra Franco, associada à Rede Nacional de Advogados Especializados na Área da Saúde, afirma que, além de desrespeitar a convenção, a decisão judicial no caso da jovem de Amparo vai contra a Constituição. “O artigo 226, parágrafo 7.° apresenta ser vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas no que se refere ao planejamento familiar. E, se o casal é livre para decidir, não poderá o Estado interferir na sua decisão de ter um filho, quanto mais obrigar a mulher à esterilização por um procedimento irreversível”, diz Sandra.
Ela lembra que a Lei do Planejamento Familiar prevê que a esterilização seja voluntária ou por autorização judicial. Neste caso, somente quando a mulher se apresentar totalmente incapaz, fato que deve ser comprovado pelo representante legal, que teria o interesse de agir em favor do incapaz.
Acesse em pdf: Defensoria tenta reverter decisão de esterilizar mulher com deficiência (O Estado de S. Paulo – 09/01/2013)
Direito de pessoa com deficiência ter filhos deve ser respeitado (O Estado de S.Paulo – 09/01/2013)