(O Estado de S. Paulo) O ônibus restou como o monumento de sua dor. Ela se chamava Jyoti Singh Pandey, uma jovem mulher indiana, violentada e morta em um ônibus noturno a caminho de casa. O ônibus com janelas escuras interrompeu seu trajeto para dar início à sessão de horrores. Os seis homens, desconhecidos entre si, funcionaram como um bando cuja única regra era violentar Jyoti brutalmente. Ainda agonizando, Jyoti foi lançada do alto do ônibus para ser esquecida em uma vala na estrada. Os homens seguiram seu curso e a deixaram inerte à espera da polícia – o segundo capítulo do descaso masculino da sociedade indiana com as mulheres. Entre desconfiança e indolência da polícia diante do seu amigo sobrevivente, a mulher anônima esperou longamente para ser socorrida. Não sobreviveu. O corpo não suportou a tortura física e moral. Seu nome foi revelado pelo pai à imprensa, após um mês de pressão internacional sobre o caso.
Do anonimato à revelação, uma série de mal-entendidos culturais entre o Ocidente anglo-americano e a Índia circulou livremente. Eram dois regimes de poder em desencontro sobre como tratar as mulheres e a igualdade de gênero. A legislação indiana proíbe a divulgação do nome das vítimas de estupro, uma lei que data do século 19. A motivação legal é simples: proteger as vítimas do estigma de ser descrita como uma mulher violada. A proteção não parece ser à integridade das mulheres ou em respeito ao seu sofrimento, mas um esconderijo diante do estigma de viver em um corpo violado. Aqui, há uma fronteira tênue entre respeitá-las na dor de uma violência atroz e escondê-las para proteger a honra dos homens de sua família. Mas é também no esconderijo do anonimato que se alimenta o monstro do estigma de ser uma mulher violentada. Uma mulher violentada não é alguém vitimado por uma ordem perversa, uma vítima a ser protegida, mas uma mulher em permanente estado de vergonha.
A declaração do pai de Jyoti ao revelar o nome da filha carrega consigo a sombra de uma cultura patriarcal que persegue o sexo das mulheres: “Minha filha não fez nada de errado, ela morreu tentando se proteger”. A garantia de que a filha morrera resistindo ao estupro é um legado do corpo morto à dignidade familiar. E o mais importante: tranquilizou sua família quanto a ela ter sido uma vítima inocente. A fantasia de que o estupro seria parte de um jogo de sedução não é exclusiva dos homens indianos. Raramente o estupro é testemunhado; quando há audiência, ela é semelhante à do bando que se formou entre as janelas escuras do ônibus. Os seis homens que violaram Jyoti eram sujeitos comuns – motorista de ônibus, lavador de carro, treinador físico ou vendedor de frutas. Talvez tenham esposas ou filhas e se revoltariam caso uma delas fosse violentada. Suas desrazões para a violência ainda não são conhecidas, mas a retórica masculina insiste em mencionar as roupas ou os modos das mulheres como convites ao sexo não consentido. O século 19 ainda está presente na legislação indiana sobre estupro e nos valores que disciplinam o corpo das mulheres. Por isso, sem pudores de ser mal entendido, o chefe de polícia de Délhi, Neeraj Kumar, propôs uma saída contra o risco do estupro: “As mulheres não deveriam sair à noite”.
A verdade é que a palavra das mulheres que sobrevivem ao estupro não é suficiente. Os regimes de verdade da polícia e da perícia médica perseguem os sinais da tortura no corpo – as cicatrizes são a materialidade da violência e afugentam o fantasma do sexo consentido. O sangue de Jyoti dignificou sua morte, ao menos ao garantir a verdade sobre a tortura. Há um paradoxo por trás dessa permanente desconfiança sobre as mulheres – não é na voz do sofrimento que se reconhece a dor da opressão, mas na agonia da violência deixada no corpo morto. A organização internacional Human Rights Watch descreve o exame indiano a que as mulheres são submetidas para atestar a verdade do estupro como o “teste dos dois dedos” (two-finger test): testa-se a elasticidade da vagina e perseguem-se as marcas da violência que comprovariam o estupro contado pela mulher. O teste passa a ser o oráculo do segredo do estupro, desvendado pelos dois dedos de peritos médicos que reanimam a cultura patriarcal ao exigir que as mulheres se mantenham castas para serem descritas como vítimas de um potencial estupro.
Erra quem imagina que esse cenário patriarcal de opressão às mulheres seja exclusivo de um país tão diverso e rico quanto a Índia. O curto-circuito cultural em proporções globais é que facilitou a exacerbação das particularidades de um país que só existe como uma unidade para o nosso olhar externo e distante. Mais de 30 anos depois da publicação de Orientalismo, de Edward Said, o outro lado do mundo que dita as regras de humanização – nós, o Ocidente – ainda insiste em descrever a Índia e o Japão como um Oriente único e com histórias periféricas à ordem global. Reconheço que assumo certa superficialidade em descrever a história de Jyoti em termos da cultura indiana, pois esse é um descritor que só existe para uma não indiana que descobre a Índia como parte desse bloco monolítico do Oriente. Mas, mesmo reconhecendo um devido relativismo cultural aos tropos que são “Oriente” e “cultura indiana”, não hesito em afirmar que há uma subalternidade estrutural das mulheres aos homens nas fronteiras da nação indiana. O descaso legal com o estupro é parte de uma ordem política dominante que ignora as mulheres em vários domínios da vida – da educação à alimentação. As mulheres comem por último, as meninas vão menos à escola, as recém-nascidas são abandonadas pelo desprazer que é ter uma filha mulher. A segurança corporal é apenas um desses domínios da lei e da ordem que ignoram as mulheres. E isso independe das línguas ou subculturas em que vivem as mulheres indianas.
Outro indício do curto-circuito internacional sobre o caso, isto é, entre os valores locais e uma ordem global que se anuncia como humanitária, é o diferente enquadramento dado pelas mídias anglo-americanas e indianas. O Ocidente humanitário e defensor do direito das mulheres assume a ordem legal americana ou inglesa como referência para uma revisão da legislação indiana de estupro: não é só a penetração pênis-vagina que deve ser descrita como estupro, mas outras formas de coerção sexual e violência, como o sexo oral ou anal. Do outro lado do globo, no entanto, o clamor não é apenas pela revisão da legislação que deve receber o nome de Jyoti Singh Pandey, mas pelo enforcamento cênico dos seis estupradores. Há, assim, um duplo e ambíguo retorno ao século 19: para harmonizar a lei antiga à ordem global do Ocidente, mas também para reanimar modos considerados arcaicos de castigo. A audiência global parece perturbar dispositivos frágeis da ordem patriarcal indiana: o sentido do anonimato se redescreve como proteção às mulheres e não à família; o castigo aos estupradores deve ser exemplar e espetacular. Não é mais o poder disciplinar do corpo que está em jogo, mas a soberania de uma nação diante dos valores humanitários do Ocidente.
A associação de advogados de Délhi declarou-se objetora para a defesa dos seis homens. Esse é o paradoxo final do caso. Não basta lembrar, pela mesma ordem humanitária do Ocidente, que todos têm direito de defesa – até mesmo o mais cruel violentador. O que parece estar em questão não é mais a memória da dor de Jyoti – é perturbador imaginar a angústia que ela sentiu nas últimas horas de sobrevida -, mas a soberania do poder de castigo do Estado indiano. A imagem recentemente divulgada pela TV Al Jazeera resume a reconquista do poder masculino sobre a desordem provocada pelo caso: um grupo de homens carregava cartazes que cobravam: “Enforquem os estupradores. Nós queremos justiça”. Sim, o “nós” são realmente os homens. Eles demonstrarão a retomada do poder soberano ao decretar a pena de morte para os violentadores, um castigo não comumente acionado pela Justiça indiana. Os homens advogados se solidarizaram ao clamor pela justiça do sangue – os seis estupradores não terão defesa. Se esse for o destino dos seis homens, a forca devolverá a ordem, e a disciplina do sexo das mulheres poderá seguir o seu curso.
Acesse em pdf: Entre o coice e o estigma (O Estado de S. Paulo – 12/01/2013)