(O Estado de S.Paulo) A festa, num dia quente de julho, há 10 anos, reunia os suspeitos habituais. Escritores, socialites, a elite da mídia nova-iorquina. Bill Clinton apareceu e logo mudou o centro de gravidade. Na órbita dos desconhecidos, a então jornalista freelancer Katie Rosman notou um dos poucos convidados negros com um ar de quem se sentia deslocado. Foi puxar conversa com ele. Era um senador estadual de Illinois que estava para se candidatar a uma vaga no Senado em Washington. Ela pensou em entrevistá-lo mas não conseguiu convencer nenhum editor a comprar a pauta.
Na saída, Rosman foi abordada por “um escritor conhecido’, que lhe perguntou quem era o homem alto e magro. Confessou que tinha confundido Barack Obama com um garçom e lhe pedira para ir buscar uma bebida.
Rosman se lembrou da história quando ouviu o presidente, com sua cadência de orador no púlpito dominical, dizer que ele sabe bem o que é ser seguido por seguranças numa loja e ouvir o ‘clic’ das portas de carros sendo trancadas quando passa pela rua.
Obama não disse nada que seja novidade para os americanos de qualquer raça. Mas só uma minoria vive esta experiência. A aparição do presidente na sala de imprensa da Casa Branca, para inserir sua biografia no debate sobre a morte estúpida do adolescente negro Trayvon Martin, tem impacto, não pelo que ele disse, mas no fato de que as palavras saíram de sua boca.
Nenhum negro americano adulto que tenha negociado sua rotina por uma grande cidade – tentar, em vão, tomar um táxi, caminhar à noite, compartilhar o cubículo de um caixa automático – acreditaria na balela de que os Estados Unidos são uma sociedade pós-racial. O fato de que Obama, o pregador da unidade, admitiu isso é um momento que, muitos pensavam, não ia chegar.
Em 2009, o consagrado intelectual negro e professor de Harvard Henry Louis Gates foi preso por um policial branco, acusado de forçar a porta de sua própria casa em Cambridge. Obama disse esperar que o incidente se transformasse num “momento didático” e convidou ambos para beber no jardim da Casa Branca, no que ficou conhecido sarcasticamente como a Cúpula da Cerveja.
Mas foi a reação dos afro-americanos à tragédia de Trayvon que parece ter ensinado algo ao presidente. Em que pese toda a retórica sobre a superação de diferenças – políticas, religiosas étnicas -, a biógrafa do casal Obama, Jodi Kantor, conta que sua vida social no primeiro mandato foi confinada a um ultra-reduzido grupo de amigos da elite negra de Chicago. Nem Bill e Hillary mereceram uma pizza informal de domingo.
Já a vida social de Sasha e Malia, graças aos colegas de escola, parece fornecer o arco-íris e, dizem, pesou na mudança de opinião dos pais sobre o casamento gay. E foi com suas filhas que Obama fechou a declaração mais importante sobre raça de sua presidência. “Elas são melhores do que nós”, disse, “sua geração é mais sensata do que fomos nós, e, com certeza, mais sensata do que nossos pais e nossos avós, nessa jornada difícil”.
Se há algo que contribui para a negação coletiva que Obama ajudou a desfazer em 17 minutos de franqueza, é a ideia de que o racista americano é uma figura demoníaca de roupão branco da Ku Klux Klan.
O racista americano pode ser um liberal democrata que se defende com o ofensivo argumento “mas eu tenho amigos negros”. Ele é o bom racista. Alguém como o colunista Richard Cohen, do Washington Post. Após o veredicto que absolveu George Zimmerman de matar Trayvon, Cohen escreveu que não se pode ignorar a cor da pele de suspeitos porque os negros são a maioria dos autores de crimes violentos. Então, “não faz sentido a polícia revistar turistas dinamarqueses em Times Square”. Notem que Cohen está usando estatística para pedir que todos os jovens negros e marrons saiam de casa diariamente assumindo sua identidade suspeita e cooperando com esta percepção. Cohen se disse cansado dos políticos que sugerem que, por “reconhecer a realidade do crime urbano, eu sou um racista”. A carapuça é sob medida para o autor do comentário.
Acesse o PDF: A banalidade do racismo (O Estado de S. Paulo, 22/07/2013)