(Folha de S.Paulo) Fez muito bem a presidente Dilma Rousseff em sancionar sem vetos a lei nº 12.845, apesar dos apelos das bancadas religiosas para suprimir o dispositivo que obriga hospitais ligados ao SUS a oferecer a vítimas de violência sexual a tal da “profilaxia da gravidez”.
Na papelada do Ministério da Saúde, a expressão designa apenas a chamada “contracepção de emergência”, que é feita com a pílula do dia seguinte –basicamente uma dose alta de hormônios, que não é considerada abortiva. Os religiosos, porém, receiam que o termo possa estimular a interrupção voluntária da gravidez, que veem como pecado.
É um caso escrachado de falsa polêmica, pela simples razão de que mulheres estupradas que engravidem já têm direito de abortar legalmente, se assim desejarem.
E essa não é nenhuma invencionice recente de esquerdistas contrários à família, mas uma regra que consta do ordenamento jurídico brasileiro desde 1940. Se há um escândalo aqui, é que, apesar de a norma estar em vigor há décadas e assegurar um direito líquido e certo, muitas mulheres, por causa da resistência velada de instituições e médicos, não tenham acesso ao procedimento, tornando necessárias peças como a 12.845.
Se as igrejas realmente creem que o aborto não deve ser autorizado nem nas condições previstas em lei, deveriam vir a público e propor claramente que ele seja proibido mesmo em caso de estupro e de risco de vida para a mãe. Aproveitando o ensejo, os católicos deveriam pedir também que pílulas anticoncepcionais e camisinhas sejam banidas do país.
Outra alternativa é que as igrejas se mirem no que o papa Francisco disse dos homossexuais –“Quem sou eu para julgar os gays?”– e deixem pecados e pecadores sob a jurisdição de Deus. Se existe de fato um ser onisciente, onipotente e que tem horror ao aborto, ele decerto não precisa da ajuda de meros mortais para exercer a justiça cósmica.
Acesse o PDF: Justiça divina (Folha de S. Paulo, 06/08/2013)