(Opera Mundi) Oito meses após comoção por estupro coletivo que matou estudante dentro de ônibus, debate não diminui número de vítimas.
Sonali Mukerjee era estudante em Dhanbad, uma pequena cidade do nordeste. No dia 22 de abril de 2003, três jovens a assediaram sexualmente ao sair do colégio. A jovem se defendeu e chegou a sua casa ilesa. Durante a noite, os atacantes invadiram a casa dela e jogaram ácido em seu rosto e em boa parte de seu corpo enquanto dormia. Sua pele ardeu, seus olhos e orelha desapareceram quase por completo. Tinha 18 anos e hoje ainda necessita de cirurgias para continuar vivendo. Seus agressores passaram dois anos na cadeia.
Tal como Sonali, a famosa heroína de Déli que morreu em dezembro passado se defendeu de seus agressores. O nível de violência exercido pelos seus cinco estupradores, em um ônibus em movimento, escandalizou a sociedade hindu, que protestou e exigiu a suspensão das agressões. Não apenas os militantes e as feministas participaram: a classe média profissional e os estudantes marcharam na capital, em Mumbai e em uma dúzia de cidades.
O dia a dia da jovem estudante de fisioterapia de 22 anos, em coma em um hospital, era transmitido ao vivo por emissoras de televisão e rádio de todo o mundo. Logo depois de sua morte, com os cinco acusados detidos (um deles menor de idade), seu pai e vários políticos pediram a pena de morte deles.
Deste então, há nos meios de comunicação um debate sobre a agressão contra as mulheres, com os estupros em primeiro plano. Paradoxalmente, algumas semanas depois, pelo menos oito adolescentes indígenas foram estupradas em um internato para mulheres no estado de Orissa — caso que mereceu alguns parágrafos em um dos diários nacionais em fevereiro.
Mas o papel dos meios ou a frequência dos estupros (cuja incidência aumentou até 70% no sul da Índia nos últimos dois anos) não explicam por que as agressões masculinas são tão violentas.
Sonali, que percorre o país defendendo vítimas como ela, acredita que em parte isso acontece porque as mulheres ainda acreditam estar indefesas, e luta para que se fortaleçam e aprendam defesa pessoal. “Se uma mulher ou uma jovem acredita ser frágil, talvez não possa se proteger”, explica.
Boski Jain, jovem profissional do centro do país, e Abenla Ozükum, trabalhadora social indígena do nordeste, coincidem em uma coisa: as formas de domínio masculino são antigas, os homens, na Índia, “têm visto as mulheres desde sempre como mercadorias, se considerando superiores e depreciando-as”, explica Ozükum.
Estigma de ser mulher
Aqui, as demonstrações físicas de afeto em público são escassas. Os jovens raramente se dão as mãos e não se beijam nos parques ou centros comerciais. Os meios de transporte coletivo reservam, por lei, uma porção de seus assentos para as mulheres e as penas por delitos sexuais incluem o enforcamento.
Por outro lado, os casos de agressões e abusos são comuns. Na rua e em casa, nos ônibus e nas escolas. “Talvez devessem torná-los impotentes pelo resto da vida, castigá-los com toda severidade”, afirma Boski Jain, de 25 anos.
No entanto, a possibilidade de contar com a polícia é insignificante. Um ano atrás, a revista Tehelka realizou uma reportagem escondida em diversas delegacias. Mais de doze oficiais explicaram frente a uma câmera que as mulheres quase sempre provocavam (ou desejavam) o estupro. Talvez por isso o nível de condenações por estupro é de 26% dos casos denunciados.
Alguns costumes masculinos
Pode ser pior: muitas vezes, sobretudo em comunidades ou famílias muito religiosas, independentemente de crenças, classe ou casta, as mulheres violentadas são obrigadas a se casar com seus agressores, como reparação pelo dano e para restituir sua honra, que de outra forma perderiam para sempre (junto com o respeito dos demais).
Ou se poderia buscar alguma causa no assassinato das recém-nascidas (na Índia, a lei proíbe que um ultrassom determine o sexo do feto para prevenir o aborto ou posterior assassinato). Ou nos casamentos arranjados que incluem crianças e adolescentes.
Talvez na falta de educação sexual nas escolas e lares, como aponta Abenla Ozükum, porque sem ela “é impossível mudar a mentalidade do povo”. Para Sonali Mukherjee, esse processo necessário levaria tempo “se começamos agora, mas o cenário seria mais favorável em 10 ou 15 anos”.
Mas os estupros e a impunidade masculina não são exclusividade da Índia. Na África do Sul, por exemplo, uma garota de 17 anos foi estuprada em um bar de Soweto em dezembro, enquanto seu namorado de Déli lutava pela sua vida. Ninguém no bar fez nada, nem mesmo chamou a polícia. Poderíamos mencionar a China, onde morrem o dobro de bebês meninas que neste país (cerca de 10 mil em 2010). Ou os Estados Unidos, onde uma mulher é violentada a cada minuto…
Cifras oficiais do governo indicam que na Bengala Ocidental houve ao menos 30 mil denúncias de crimes contra mulheres em 2013, algo que a governadora Banerjee nega, “como se eu tivesse culpa dos estupros”.
A estatística dos estupros é de quase 25 mil por ano em toda a Índia (um a cada 20 minutos). Três de cada quatro estupradores saem livres “e a prisão não ajuda porque seguem sendo parte de uma comunidade”, diz Sonali. “Deveriam ser condenados à prisão perpétua em completo isolamento, sem nem contato com seus familiares.”
Há algumas semanas, Sonali fez 29 anos. E Rubi Gupta, de 28, morreu no dia 21 de julho em um hospital na cidade de Bhopal, queimada com ácido pelo seu ex-namorado. Uma semana mais tarde, cinco jovens sequestraram uma garota de 12 anos em sua comunidade, a estupraram e a abandonaram no caminho; não há ainda detidos. A lista de crimes e abusos parece interminável, as causas e as explicações também.
Acesse o PDF: Sul da Índia tem aumento de 70% no índice de estupros em dois anos (Opera Mundi, 31/08/2013)