(Território de Maíra/Carta Capital) Eu nunca tinha apanhado na vida. Ao menos não literalmente. Foram 31 anos inocentes e imunes, interrompidos bruscamente por um tapa na cara.
Aconteceu em setembro, final do verão por aqui. Meus óculos de sol caíram imediatamente no chão e, por alguns segundos, eu perdi a referência de onde estava. Quando voltei a mim, minha primeira reação foi não ter reação. Lembro-me de permanecer atônita. Em seguida, virei a cabeça tentando localizar o sujeito, mas ele já havia sumido na multidão. Eu estava em uma esquina movimentada da cidade e fui pega completamente desprevenida.
Tomei o metrô tentando freneticamente devolver com os dedos as lágrimas que insistiam em cair de dentro dos olhos. Só conseguia pensar que eu era mulher, estava sozinha e vestia uma blusa regata. E que a combinação desses fatores poderia ter motivado aquele homem de vestimentas religiosas tradicionais. Quando abri a porta de casa, chorei até a exaustão.
Poucos dias depois veio a segunda agressão, dessa vez em forma de bofetada no braço. De novo, a sensação de perplexidade absoluta. E outra vez, perdi a pessoa para a multidão. Mas eu tinha então uma certeza: sim, eu havia apanhado porque era mulher. Afinal, aquele senhor que reclamava que as bicicletas estavam muito próximas da faixa de pedestres poderia ter agredido qualquer outro ciclista em volta, homem. E ele escolheu a mim.
Com uma semana de diferença, dois sujeitos absolutamente desconhecidos sentiram que poderiam bater em uma mulher na rua — eu — e assim o fizeram. Para eles, deveria ser algo “natural”. Para mim, foi uma experiência muito traumática. A sensação de vulnerabilidade era tamanha que eu comecei a achar que eu poderia sofrer qualquer coisa de ruim, como por exemplo ser empurrada para baixo do trem quando ele estivesse chegando na plataforma.
Escrever sobre esses episódios por um bom tempo me pareceu impossível. Indizível. Faço agora por acreditar que compartilhar histórias como essa sempre ajuda a refletir sobre o quanto a violência contra as mulheres é estrutural dentro de nossa sociedade, atravessando todos os locais, situações, classes, idades e etnias.
Assim como aconteceu comigo, poderia acontecer com qualquer uma. E poderia ser bem pior: muitas de nós sofremos cotidianamente violências doméstica e psicológica, assédios moral e sexual, estupros ou somos assassinadas em decorrência do simples fato de sermos mulheres.
Vivemos em uma sociedade em que determinadas marcas e diferenças são utilizadas como pretexto para estabelecer uma hierarquia entre seres humanos. Assim como xs negrxs foram apartados na África do Sul a partir das mais absurdas justificativas, as mulheres são até hoje consideradas inferiores. Não são situações iguais, obviamente, mas a lógica implicada é a mesma. Em ambas, há um processo onde a desigualdade construída a partir de condições sociais, culturais e históricas adquire uma vestimenta de “natural”, como se sempre houvesse sido daquela maneira. O que está oculto, porém, é o verdadeiro sentido dessas relações de poder: o grupo que está em cima se apropria daquele que está embaixo.
Dentro dessa perspectiva, as mulheres são tomadas como um todo. Da mesma maneira como xs escravxs, elas não cedem apenas a sua força de trabalho, mas sim o seu indivíduo inteiro. Ao mesmo tempo e de maneira contínua estão presas à reprodução, à criação dxd filhxs, ao cuidado com xs idosxs e com o lar, à satisfação sexual do Outro, a fornecer-lhe conforto, apoio e equilíbrio psíquico e, finalmente, à ocupar posições menos importantes ou bem remuneradas no mercado de trabalho.
As mulheres formam uma classe, apropriada privada — via casamento e/ou família — e coletivamente — por meio das igrejas, da vida comunitária, da família ampliada para além da célula inicial etc. E dentro desse sistema onde não detêm a propriedade sobre seu corpo e que são vistas de maneira indistinta como um “tipo” de gente ou coisa inferior, é “natural” que aqueles que as possuem sintam-se no direito de bater não apenas em suas mulheres como em quaisquer mulheres. Inclusive para lembrar-lhes, com alguma frequência, qual é o seu lugar dentro da hierarquia.
Como sairmos, então, dessa situação?
Bom, eu quero fazer um curso de defesa pessoal para tentar ter outras reações — e mais rápidas — do que simplesmente ficar chocada se algo assim acontecer de novo. Muitos grupos feministas e de mulheres oferecem oficinas desse tipo gratuitamente — mais um indício, aliás, do quanto nos sentimos agredidas.
A denúncia é também uma arma poderosíssima. No caso da violência doméstica, a Lei Maria da Penha é uma grande aliada para o agressor ser responsabilizado e punido. E campanhas de conscientização são sempre bem-vindas.
Mas, para mim, essa violência estrutural só vai acabar de fato quando não tivermos mais divisões em classes. Basta olharmos para países com índices muito melhores que os nossos em termos de distribuição de renda e educação e percebermos que, infelizmente, a violência contra a mulher, motivada por ela ser mulher, persiste.
Ou, em um resumo bem simplista, eu apanhei em Paris.
Em tempo: hoje, Dia Internacional dos Direitos Humanos e último dos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres, a ONU Mulheres promove uma blogagem coletiva da recém-lançada campanha O VALENTE NÃO É VIOLENTO. Este blog junta-se aos esforços para dizer: basta de violência contra a mulher! Mais informações: https://www.facebook.com/ovalentenaoeviolento e http://www.ovalentenaoeviolento.org
Acesse o PDF: A primeira vez que eu apanhei (Território de Maíra, 10/12/2013)