(El País) O centro de Madri acolheu uma ampla mobilização contra a reforma da lei de aborto, que reúne vários milhares de pessoas. Dezenas de organizações de mulheres e entidades que lutam pelos direitos reprodutivos de toda a Espanha marcham pelo centro da capital. Somaram-se ao protesto sindicatos e partidos políticos para exigir a retirada do anteprojeto de lei aprovado pelo Conselho de Ministros no final de dezembro. Dezenas de trens e ônibus chegaram à capital para participar da iniciativa Trem da Liberdade, uma ideia que nasceu em Astúrias (norte da Espanha), a partir de duas organizações de mulheres que queriam viajar a Madri para entregar um manifesto contra a nova lei, e que se ampliou com outras muitas cidades. Os manifestantes pedem a demissão do ministro de Justiça Alberto Ruiz-Gallardón, protagonista principal dos gritos dos manifestantes. Ao lado da exigência de demissão do ministro, outro dos gritos mais ouvidos na mobilização foi: “Eu decido”. Vários representantes políticos exigiram a retirada do projeto no início da manifestação, na estação de Atocha.
O ambiente festivo predominou na marcha, com uma batucada que alegou a passagem dos manifestantes. Entre os participantes se encontravam María Rosa e sua filha, que chegaram de Barcelona para defender o direito ao aborto. “Isso diz respeito a todos, a nós, a nossos filhos e a nossos netos, por isso é preciso se mobilizar”, diz María Rosa, que já se manifestou em 1985 pelo direito ao aborto.
“Para a Idade Média os do PP”
Justa Montero, da Assembleia Feminista e uma das históricas na luta pelo direito ao aborto diz que essa é uma das maiores manifestações que já se realizaram na Espanha. “Em 1979 também houve outras, mas essa é a maior dos últimos anos”, frisou. Entre os participantes se destaca o elevado número de homens. Félix, de 37 anos, e Juan Carlos, de 45, vieram de Sória. Diante do Ministério da Saúde afirmam que “homens e mulheres tem que se manifestar quando há um corte de direitos como esse, porque os filhos são dos dois”. Rita, portuguesa, enrolada numa bandeira do seu país, segura um cartaz no qual se lê: “Al medievo los peperos” (“Para a Idade Média os do PP”, Partido Popular). Ela se manifesta junto com seu marido e seus dois filhos, de 3 e 5 anos. Acredito firmemente que essa lei tenta meter as mulheres na cozinha”, diz Rita.
“A nova lei é um retrocesso enorme em todos os direitos que as mulheres temos conquistado. É uma lei que nos obriga a sermos mães quando não queremos. Nos tira a liberdade de decidir”, reclama Victoria García Corte, membro da Associação de Mulheres pela Igualdade Valle de Nalón, uma das mulheres que viajaram de Astúrias a Madri. “O que pedimos é a liberdade na hora de decidir. Numa sociedade democrática ninguém pode nos obrigar a sermos mães quando não queremos. Tampouco nos criminalizar por exercer nossos direitos; direitos como o do aborto, que custou muito conseguir”, argumenta García Cortés. “Não estamos dispostas a nos render”, diz. “Os que fazem essa lei são os filhos das que há anos iam para Londres para fazer um aborto”, assegura uma das manifestantes deste sábado em Madri.
O anteprojeto de lei, impulsionado pelo ministro da Justiça, elimina o direito das mulheres decidirem livremente abortar, coisa que a atual lei, que o governo revogará parcialmente, permite até a 14ª semana de gestação. Com a nova lei, que deve ainda obter os relatórios exigidos e passar pelo trâmite parlamentar, só será permitido o aborto em dois casos: estupro ou grave risco para a saúde física ou psicológica da mãe. Dessa forma, o Ministério da Justiça redigiu uma norma semelhante à que prevaleceu na Espanha de 1985 a 2010 – quando o aborto era crime, exceto em determinados casos –, mas muito mais restritiva: elimina a possibilidade de aborto por má-formação do feto, um dos pontos que mais críticas desencadeou dentro do Partido Popular. A nova lei do aborto, a mais restritiva desde a democracia, afastaria a Espanha dos modelos que regem a maioria dos países da União Europeia. Na Bélgica, na Itália, na Alemanha, em Portugal e na França, as mulheres podem abortar sem ter que alegar ou demonstrar nenhuma causa durante as primeiras semanas de gestação. É o que se conhece como lei de prazos.
“Não vamos permitir que negociem com os direitos das mulheres, com nosso direito à liberdade”, diz Consuelo Navarro, secretária geral de CC OO (Comisiones Obreras, central sindical) em Alicante, de onde vieram para Madri dois ônibus. “Levamos muito tempo brigando por igualdade e agora não é o momento de recuar. Ainda mais em um contexto democrático no qual continuamos acreditando. Ninguém pode nos expropriar do direito de decidir sobre nosso próprio continente, que é nosso corpo”, diz. A feminista e professora de direito Mar Esquembre, também de Alicante, subscreve suas palavras. “Nos mobilizamos em Madri pela nossa liberdade, porque fizemos um pacto entre mulheres para lutar por nossa liberdade”, acrescenta.
A reforma espanhola desencadeou um debate em toda a União Europeia, na qual foi vista como um exemplo de retrocesso. As mobilizações em Madri receberão apoio de outras cidades europeias, onde também estão previstas manifestações. Na França, por exemplo, 80 organizações de mulheres convocaram passeatas em 34 cidades. Nesse país também está ocorrendo um debate sobre o direito à interrupção voluntária da gravidez, reforçado por sua Assembleia Nacional há alguns dias.
Ontem, o Trem da Liberdade de Astúrias, que chegou a estação de Atocha às 11.30, fez sua primeira e única parada em Valladolid, onde as mulheres pernoitaram. Nessa cidade, onde se está celebrando esses dias a Convenção Nacional do Partido Popular, centenas de pessoas se manifestaram em frente ao auditório onde estava reunida a cúpula do PP. Ali, foi lido o manifesto que as asturianas entregarão hoje ao Congresso de Deputados. O texto, intitulado “Eu decido”, reivindica o direito das mulheres decidirem livremente sobre sua maternidade.
Com informação de Ana Alfageme e Carmen Pérez-Lanzac.
Acesse o PDF: Milhares de pessoas protestam em Madri contra a lei do aborto (El País Sociedade – 01/02/2014)