(O Globo) O preconceito racial brasileiro ficou adormecido por décadas enquanto o negro não competia economicamente com o branco
Até pouco tempo se insistia que não existia preconceito racial no Brasil. Isso era sustentado por muita gente séria. Se é inquestionável que a colonização portuguesa permitiu a construção de uma nação plástica e que o negro no Brasil foi fundamental para nosso processo civilizatório, também é certo que essa percepção em relação ao preconceito mais cedo ou mais tarde se tornará visível.
Digo isso enquanto acompanho com enorme interesse o que vem acontecendo nos Estados Unidos nos últimos anos. Cada vez me convenço mais que o maior legado dos anos Obama não será na área econômica, o que já está claro, apesar da inegável recuperação do país, mas sim na revisão da imensa chaga da escravidão.
A vitória recente no Oscar de melhor filme de “12 anos de escravidão”, na linha sucessória de “Django livre”, de Tarantino, é uma afirmação bem clara do desejo dessa grande nação de rever seus próprios fantasmas, de se expor e analisar a si mesma. Fizeram isso com a Guerra do Vietnã. Fazem agora com a escravidão.
Parte da minha geração foi formada no fim dos anos 60 com uma visão maniqueísta na qual o gigante americano era o inimigo a ser combatido. O processo cultural se faria a partir da Europa, seja com a nouvelle vague ou com o existencialismo marxista. Do ponto de vista econômico, é evidente que o Brasil será sempre muito mais parecido com as economias europeias nas quais há um Estado forte, um modelo econômico dependente dele e o sistema de freios e contrapesos da sociedade é feito em torno dele. Não somos e não seremos nunca uma economia pura de mercado. A Europa tampouco. O que aconteceu com aquelas 13 colônias americanas no século XVII não é exportável.
Entretanto, do ponto de vista cultural e da própria formação social, temos muito mais a ver com os Estados Unidos do que com a Europa. Um país jovem, continental, com enorme população que necessita crescer e desenvolver seu mercado interno. Experimentamos agora no Brasil um momento semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos na década de 60. Criamos uma grande classe média que passou a ser a principal força econômica e social da mudança.
A escravidão explica a maior parte da nossa História. Todos os grandes autores que pensaram pela primeira vez livremente o país — Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Junior — foram unânimes em decifrar nossos enigmas a partir dessa realidade, dessa raiz. Não podemos esquecer que fomos das últimas nações a abolir a escravidão e um dos países nos quais ela mais perdurou. Em determinado período, a maior atividade econômica brasileira era o tráfico de escravos, superando a exploração do açúcar ou da pecuária. Tão dependente era nosso modelo da escravidão que o Império se desconstrói com seu término.
O preconceito racial brasileiro ficou adormecido por décadas enquanto o negro não competia economicamente com o branco. Algo tão profundo, recalcado, que não podia ser nomeado. Algumas profissões ligadas ao esporte e à cultura permitiam certa mobilidade social, ainda que com restrições. Isso felizmente tem se modificado. A melhora na distribuição de renda, a redução da mortalidade e o crescimento do mercado interno têm colaborado para a maior inclusão do negro em nossa sociedade. Estamos apenas começando. O racismo ainda velado oriundo da longa chaga da escravidão, nesse país de mulatos — que ainda recusa esse fato —, é o novo desafio na construção de nossa nação.
*Luiz Roberto Nascimento Silva é advogado e foi ministro da Cultura.
Acesse o PDF: O progresso que revela o racismo (O Globo, 11/03/2014)