(Folha de S.Paulo, 02/04/2014) Foto de estudante em apoio a protesto virtual alcança 11 milhões de usuários de rede social e incentiva leitoras a revirar passado e enviar relatos de abuso sexual
Bastou pouco mais de um dia para que uma foto enviada pela leitora e estudante Bianca Medeiros, 19, se tornasse a imagem mais visualizada e compartilhada nos quatro anos da página da Folha no Facebook.
Ela foi feita na semana passada, em apoio ao protesto virtual “Eu não mereço ser estuprada” –e incentivou que dezenas de fotos com teor semelhante fossem mandadas. Bianca diz que a iniciativa foi para que a manifestação “não perdesse força”.
“O dedo é um gesto de protesto contra os 65%”, afirma a estudante, em referência à pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que deu origem ao ato virtual ao apontar que dois terços dos brasileiros acham que a mulher que mostra seu corpo merece ser atacada.
Depois de postada no Facebook, a imagem de Bianca alcançou quase 11 milhões de usuários. Três leitoras, motivadas pela publicação, decidiram revirar um passado já sepultado e enviar os relatos reproduzidos nesta página.
Mexer em uma ferida profunda, ainda que em anonimato para proteger parentes da exposição, tem um motivo claro para todas: compartilhar experiências para que abusos sejam denunciados e traumas sejam superados.
PATRÍCIA*, 27 DESIGNER GRÁFICA: “Depois de vencer o abuso, tive que enfrentar o preconceito”
Muitos me conhecem, mais poucos sabem o que aconteceu comigo.
Tenho 27 anos e fui abusada sexualmente por uma pessoa da minha família quando eu era adolescente.
Nada foi feito, tive medo de ninguém acreditar em mim.
O agressor era da minha própria família. Pela primeira vez senti vontade de falar sobre o tema –hoje superei meu trauma.
Mas, ao vencer as marcas de uma violência, fui obrigada a vencer o preconceito: sou casada com uma mulher e minha opção também é cercada de agressividade e de ódio.
Nós temos medo desse mundo machista, sem amor e sem respeito. Não mereço ser estuprada e não mereço ser estuprada de novo. Ninguém merece.
TATIANA*, 30, ANALISTA DE ATENDIMENTO: ‘Não, eu não estava pedindo’
Tatiana foi abusada sexualmente por um tio quando tinha só 9 anos. Agora consegue falar sobre o caso e espera que seu relato, enviado pelo Facebook à Folha, incentive pessoas que sofreram a mesma violência.
Escrevo de forma anônima porque eu não tenho a intenção de chocar minha família e meus amigos. Mas eu sinto que é o momento de falar, abraçar a causa. Aproveitar que hoje, graças a Deus e a alguns anos de terapia, eu consigo falar sobre o assunto sem me magoar. Consigo fazer sexo de forma natural.
Para e pensa: eu tinha só 9 anos. A primeira vez que aconteceu eu estava de saia –eu sempre estava de saia! Será que por esse motivo eu estava pedindo? Não, eu não estava pedindo.
Eu confiava naquela pessoa. Era meu tio. Acreditava quando ele me tocava intimamente e dizia que aquilo era só carinho. Eu não gostava, não queria, sentia nojo quando, além dos dedos, ele usava a língua nas minhas partes íntimas dizendo que aquilo era carinho. Eu tive febre, vomitei, senti nojo e me calei. Tinha medo e vergonha. Não tenho mais.
Comecei a namorar aos 22 anos e só aí me senti preparada para me relacionar sexualmente. Roupa não dita caráter e muito menos desejo sexual. Meu corpo é meu templo e só eu decido com quem eu quero transar –eu estando de burca ou pelada.
Pense na sua mãe, nas suas irmãs, filhas e sobrinhas. Alguma mulher da sua família pode, neste momento, estar sendo abusada, molestada, estuprada e sofrendo calada. Não, eu não pedi. Não, eu não quis. Não, eu não tive culpa.
JOANA*, 22, DECORADORA: ‘Se nós temos alguma culpa é a de ficarmos caladas’
A culpa não é nossa! A culpa é dos nojentos aos montes passando por nós o tempo todo. Estou impressionada com tantas mulheres que, indignadas como eu, estão se abrindo. E quer saber? Já é hora. Se temos alguma culpa é a de nos calar, por medo ou vergonha.
Sim eu também já fui abusada, há dois anos. E de onde eu menos esperava –dentro da minha própria casa.
Não fui estuprada, graças à Deus. Mas foi uma tentativa. Um abuso muito maior do que levar uma cantada indecente na rua ou uma passada de mão na balada –muitos não imaginam o quanto isso também é desagradável.
Isso deixou marcas profundas que supero um pouco todos os dias.
Sabe o que eu mais ouço? “Mas você estava de roupa curta?” A resposta é não, estava de calça e casaco. E mesmo que eu estivesse, não justifica.
Muitos dizem que o homem é assim mesmo, movido pelo instinto. Instinto é o caramba, somos todos seres racionais.
Digo isso tudo hoje por acreditar que esse seja o primeiro passo para acabarmos com os absurdos que acontecem todos os dias embaixo do nosso nariz e a maioria ignora. Você não imagina que conhece muito mais mulheres que já viveram muitos tipos de abuso.
Espero que isso ajude outras mulheres de alguma forma e que faça com que todos lutem por um mundo menos machista.
* Os nomes reais foram preservados, a pedido das leitoras, para proteger amigos e parentes
Acesse o PDF: #eunãomereçoserestuprada (Folha de S.Paulo, 02/04/2014)