(Agência Patrícia Galvão, 15/04/2014) Estive representando a Articulação de Mulheres Brasileiras na Delegação Oficial do Brasil no processo de Cairo + 20, que estava acontecendo na sede da ONU, em Nova Iorque, durante toda a semana passada. A discussão sobre direitos sexuais, direitos reprodutivos, diversidade das famílias, migrações, racismo, morte materna, juventudes, direitos das mulheres pegou fogo!!!
Para quem não sabe, em 1994, representantes de 179 estados-parte das Nações Unidas se encontraram na cidade do Cairo, no Egito, na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento. E aprovaram uma agenda cujos conteúdos colocavam os governos de todo mundo no mais alto nível de compromisso com as expectativas das organizações e movimentos de mulheres e feminista, de juventudes, da diversidade sexual, pela liberdade religiosa, contra todas as formas de discriminação.
As Nações Unidas haviam aberto, desde 1992, um Ciclo de Conferências Sociais super importante. À época, questões estratégicas para a vida no nosso planeta foram intensamente debatidas. E, a partir daí, pactuados, entre os governos, planos de ação relacionados ao desenvolvimento e meio ambiente, desenvolvimento e população, à igualdade para as mulheres, contra o racismo entre outras .
Agora, passados 20 anos do início do Ciclo Social, as Nações Unidas estão promovendo uma espécie de avaliação e revisão do que se conquistou desde então, bem como dos obstáculos encontrados e desafios que ainda persistem e os novos que emergiram. Fez parte desse processo a Rio+20 (dos governos) e a Cúpula dos Povos (dos movimentos e redes), recentemente realizada no Rio de Janeiro, para avaliar a implementação do Plano de Ação da Rio 92 – Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e traçar novas estratégias.
Na semana passada, foi a vez de Cairo+20, na sede da ONU, em Nova Iorque. A reunião da Comissão de População de Desenvolvimento (CPD) das Nações Unidas, formada por delegações governamentais, encarregadas da avaliação dos resultados e atualização dos compromissos assumidos no Cairo, esteve cercada de ativistas, na sua grande maioria dos movimentos feminista, de mulheres negras e de povos indígenas, de juventudes e LGBTI.
Nós ativistas, tínhamos plena convicção de que, para muitos governos, seria confortável que o Plano de Ação do Cairo caísse no esquecimento, morresse de inanição, que os governos não tivessem que prestar contas de nada, muito menos assumir desafios e firmar compromissos futuros relacionados a esta agenda política. Era perceptível que os governos tinham muitas dúvidas sobre as possibilidades e a necessidade de ter uma Resolução consensual de Cairo+20 pela CPD-ONU.
Por um lado, alguns governos mais compromissados com esta Agenda, tinham receio que as forças conservadoras presentes à reunião da CPD pudessem impor retrocessos ao que havia sido firmado no Plano de Ação do Cairo. De outro lado, os conservadores e fundamentalistas, temiam que uma nova Resolução revigorasse os pactos assumidos há duas décadas, e levasse a novos compromissos, além dos firmados no Cairo. E, no meio disso tudo, havia também os governos que estavam mais interessados em aproveitar a oportunidade do conflito para tirar vantagem e negociar outros interesses, como combustíveis, grãos, cargos… usando os direitos humanos como artifício.
As organizações de mulheres e redes feministas da América Latina e do Caribe tínhamos certeza da relevância da nossa região nessa etapa final de Cairo+20, seja pela força da nossa articulação como sociedade civil, seja pela consistência do Consenso de Montevidéu. Lutamos, portanto, para que a Resolução da CPD assumisse e incorporasse os compromissos firmados na 1ª. Conferência Regional sobre População e Desenvolvimento.
A delegação oficial brasileira para a 47ª Sessão da Comissão de População e Desenvolvimento foi chefiada pela Ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres – Eleonora Menicucci de Oliveira. Sua constituiçao foi marcada pelo firme compromisso com o Consenso de Montevidéu e, por isso mesmo, foi composta por representantes de 6 ministérios e da Comissão Nacional de População de Desenvolvimento, além de várias representações de movimento sociais, a maioria do movimento de mulheres e feminista.
A delegaçao brasileira, no começo chefiada pela Ministra Eleonora e, depois do seu retorno ao Brasil, pelos diplomatas Guilherme Patriota e Alexandre Ghisleni teve uma atuação forte, incisiva, para reafirmar os princípios de Cairo, e para incorporar os direitos sexuais à Resolução, assim como as questões relacionadas à educação sexual, juventudes, população afrodescendente, povos indígenas, orientação sexual e identidade de gênero, mortalidade e morbidade materna, mudanças climáticas, apenas para citar as mais controvertidas.
Entre as delegações mais atuantes e progressistas, além do Brasil, podemos destacar a Argentina, El Salvador, Colômbia, México, Cuba, Equador, África do Sul, Noruega, Nepal, entre outras. A delegação do Uruguai estava presidindo a reunião da CPD e, por esse motivo, não teve uma atuação mais incisiva na proposição e debate das propostas, deixando saudades do papel brilhante que @s uruguai@s desempenharam na nossa Conferência Regional. Menção especial deve ser feita às Filipinas, que sustentaram com muita garra e total coerência, do começo ao final, as propostas mais avançadas neste processo. Do lado oposto, a vanguarda do atraso foi liderada pelo Egito, Grupo Africano (que não reuniu todos os países daquele continente), Grupo Árabe, Vaticano, Irã, Indonésia entre outros.
Vivemos tempos difíceis, sem dúvida! Já sabíamos, desde a Rio+20, que a disposição para sustentar e aprofundar uma agenda de direitos nesses processos dos +20 havia sido esvaziada por duas vertentes políticas: a que defende a chamada economia verde/crescimento inclusivo, e a do conservadorismos religiosos/fundamentalistas.
Dos embates entre as propostas do atraso e as propostas progressistas no processo de Cairo+20, ficamos (organizações e movimentos), no final das contas, com a vantagem de ainda sustentar a resistência contra quaisquer retrocessos. E isto não foi simples, nem rápido. A tarefa complexa de que se incumbiram as organizações e movimentos, em especial na nossa América Latina e Caribe, residiu em comprometer politica e formalmente nossos governos com a defesa do Plano de Ação do Cairo. Para, desse modo, reduzir ou eliminar as chances de que as tendências conservadoras fundamentalistas e gananciosas capitalistas (presentes em vários governos de diversos países) interferissem sobre a posicionamento dos governos latino-americanos neste processo. Desse modo, várias delegações oficiais latino-americanas puderam (e deviam) sustentar um embate mais duro com as outras delegações que vieram para detonar os compromissos assumidos no Cairo, em 1994.
Na última semana, foram infindáveis horas de discussão, que começavam de manhã e entravam pela madrugada. No último dia, a sessão da CPD varou a madrugada inteira e terminou na manhã do sábado, às 7 horas. Das disputas diplomáticas entre os que queriam retroceder, por exemplo, em relação ao reconhecimento das várias formas de família, e aquel@s que estavam empenhados na tarefa de avançar para o reconhecimento dos direitos sexuais, a resultante foi uma Resolução (anexa, em inglês) que simplesmente reafirma Cairo, ainda que esvaziada de conteúdos mais controvertido.
Sim, vivemos tempos difíceis! As arenas criadas para processar conflitos políticos têm se mostrado incapazes de lidar com a agenda que lhes compete. E, nesse contexto, a resistência é o possível, o necessário e, inevitavelmente, complexo.
* Guacira César de Oliveira é socióloga e coordenadora da ONG CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria).
Mais informações sobre os debates da Cairo+20 abaixo
Discurso da ministra Eleonora Meniccuci na abertura da Conferência (em espanhol)