(O Globo, 16/04/2014) Onda de expressão de preconceito nos estádios de futebol, se não for contida, pode virar legado indesejável da copa no brasil
É particularmente cruel a multiplicação das ofensas raciais a jogadores de futebol, aqui e lá fora, no ano da Copa no Brasil. As seguidas manifestações racistas contra brasileiros nos estádios remetem ao passado nada honroso do esporte favorito da nação. Num rastilho de pólvora invertido, viajam no tempo e explodem em lembranças da intolerância que merecia, há tempos, estar sepultada. Tinga (Cruzeiro), Arouca (Santos), Maicon Silva (Londrina), Neymar (Barcelona) e o árbitro Márcio Chagas são vítimas do preconceito que emerge neste 2014. Mas a história é farta de exemplos. Na virada do século XX, a Liga Metropolitana de Football, federação estadual da época, proibia a escalação de pessoas de cor . Jogadores não brancos esticavam os cabelos e cobriam a pele com pó de arroz para entrar em campo. Em 1950, o Mundial que sagrou o Uruguai campeão e forjou o país do futebol também inaugurou o estigma de Barbosa, desconfiança que até hoje ronda goleiros negros.
Por trás dos gritos e imitações de macaco, não se iludam as testemunhas de última hora, está o racismo de sempre, ancorado na desumanização. É assim que o antropólogo Rolf Malungo de Souza classifica as ofensas. Chamar de macaco, diz, é um jeito de vincular o negro a algo que parece, mas não é humano. A associação é antiga. Nos Estados Unidos do século XIX, negros eram representados como gorilas por membros da organização racista Ku Klux Klan. No Brasil, gerações seguidas de pretos e pardos ouvem o xingamento desde as desavenças de infância.
É pela desqualificação do outro que a ideia de superioridade tenta se estabelecer. Trata-se de uma afirmação de supremacia pelo avesso, sublinha o antropólogo Julio Tavares. O negro, continua, é desumanizado sempre que se torna ameaça, presença desafiante ou alvo da frustração.
A psicologia social ajuda a entender por que os estádios são cenários apropriados às expressões da intolerância. Na multidão, tudo é permitido. No anonimato, ofende-se a cor, a honra, a orientação sexual de jogadores, técnicos e árbitros.
Se a autoria desaparece, a impunidade reina. Injúria racial é crime previsto no Código Penal. Mas a dificuldade de apontar a responsabilidade individual inviabiliza os processos. Ações judiciais que não avançam e punições mínimas a clubes alimentam reincidências. E a onda de preconceito se espalha. Se não for contida, periga virar legado indesejável da Copa de 2014.
A Fifa, em 2002, instituiu o Dia Contra a discriminação Racial. Jogadores entram em campo com a faixa Diga não ao racismo . Os resultados, se vê em estádios sul-americanos e europeus, não são animadores. O governo brasileiro, recentemente, anunciou a Copa sem racismo .
A sociedade civil começa a se mobilizar. Mombaça compôs com Mu Chebabi a canção Vem vencer , com letra que condena o preconceito e exalta a igualdade. A Boxx Filmes está produzindo o clipe, com participação de personalidades do quilate de Elza Soares, Zezé Motta e Luiz Melodia. Um grupo de intelectuais negros, liderado pela escritora Ana Maria Gonçalves, articula campanha de repúdio à comparação de negros a macacos.
São sinais de reação de uma sociedade que precisar combater a safra de intolerância. O racismo nos estádios não humilha só os alvos diretos. Fere todos os negros e negras brasileiras. E pior: aprisiona crianças e jovens a conceitos do Brasil Colônia, em plena era da modernidade.
Acesse o PDF: O racismo de sempre (O Globo, 16/04/2014)