Só se veem muitos negros na TV se o assunto for escravidão, diz Zezé Motta

10 de abril, 2016

(Folha de S. Paulo, 10/04/2016) Depois de um atraso no vôo que vinha do Rio, Zezé Motta chega sorridente e apressada ao Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, em SP, para um bate-papo com fãs. “Está muito tarde? Ainda estão esperando?”, pergunta à repórter Letícia Mori antes de dar uma arrumadinha na roupa e no cabelo.

A sala é pequena –a ideia é que o encontro seja intimista– e está lotada. Mais da metade da plateia é composta por jovens mulheres negras, que fazem a maior parte das perguntas. Várias delas contam como a atriz foi um modelo e como as fazia se sentir representadas. “Eu lembro a primeira vez que te vi. Gritei: ‘Olha mãe! Tem uma negra na TV e ela não é empregada!'”, diz uma das jovens.

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Zezé ficou marcada por personagens fortes e complexas como Xica da Silva, do filme homônimo de 1976, e Dandara, do longa “Quilombo”, de 1984. Mas também representou muitas empregadas, tantas que já perdeu a conta. “O problema não é fazer o papel, é que as personagens não tinham vida própria, viviam a reboque dos outros”, diz ela.

Lembra de um episódio de quando começou a estudar artes dramáticas na escola O Tablado, uma das mais importantes do Rio. Uma vizinha ficou surpresa e disse que “não sabia que para fazer papel de empregada precisava de curso.” “Achei que ela era a pessoa mais ignorante do mundo. Mas quando fui pra TV foi assim mesmo”, conclui Zezé, que teve uma experiência diferente no teatro. A atriz estreou na peça “Roda Viva”, de Chico Buarque, dirigida por José Celso Martinez Corrêa.

Depois de rodar o mundo para divulgar o longa “Xica da Silva”, a atriz voltou ao Brasil e recebeu uma dezena de convites. Entre eles, um para encenar um conto de Clarice Lispector, “Festa de Aniversário”. “Fui devorando o texto no carro. Quando cheguei lá, o papel era pra servir salgadinho na festa. Eu disse não”.Afirma que os produtores e autores hoje em dia se preocupam mais com diversidade, mas que ainda “tem muito chão pela frente” antes do problema ser resolvido. “Você só vê um grupo muito grande de negros em cena quando o assunto é escravidão. E não adianta esperar por mudanças, nós é que temos que correr atrás. Eu ainda luto por representatividade na TV.”

Zezé se decepcionou com o desenvolvimento de seu papel na novela Boogie Oogie (2014), a mais recente que fez na Globo, em que também interpretou uma empregada. “Me disseram que ela ia incentivar o filho a ser diplomata, apesar das dificuldades que ele sofria. No fim, isso foi mencionado pouquíssimas vezes. Fiquei muito triste, meu personagem perdeu o sentido.”

Algumas das perguntas da plateia se repetem –como ela começou a militar no movimento negro e sobre padrões de beleza. Responde tudo com paciência, com sua voz calma e grave. Conta que começou a se aceitar quando viajou para os EUA nos anos 1960 para apresentar uma peça.

“Vi aqueles negros lindos, orgulhosos, de cabelo black power. E eu com uma peruca estilo chanel, pensando em fazer cirurgia no nariz porque me falavam que o meu era feio. Eles foram perguntar pro diretor quem era aquela alienada.”

Diz que ainda existem muitos atores negros desempregados e deprimidos. “Antônio Pompêo [morto em janeiro, aos 62 anos] foi um deles, ele morreu de tristeza. Estava há muito anos sem nenhum papel.”

Não é o caso de Zezé, que aos 71 anos emenda um projeto atrás do outro. Depois de gravar a novela “Escrava Mãe”, que será exibida na Record em maio, ela planeja uma peça de teatro, participa da série “Condomínio Jaqueline” na Fox e vai lançar um documentário sobre a verdadeira história de Xica da Silva. Mas quer mesmo é falar do álbum “O Samba Mandou Me Chamar”, que lança neste ano. O projeto existe há 8 anos, mas só agora fechou com uma gravadora.

É a primeira vez que ela faz um álbum exclusivamente de samba, depois de quase dez discos lançados. “Cheguei a receber uma proposta para ir pro samba depois de meu primeiro LP. Na época eu era a [atriz negra] da moda. Hoje é a Taís Araújo”. Alguém na plateia diz que só deixam ter uma [mulher negra em destaque] por vez, e ela dá um sorriso irônico.

Continua: “A gravadora achou que naquele momento de sucesso eu deveria ir pro samba, que faria muito dinheiro”, conta ela, que não aceitou a proposta, feita “de forma desajeitada”.

“Me disseram que a Alcione não estava indo muito bem, tinha acabado de se separar, e que eu deveria tomar o lugar dela. E eu falei: ‘Gente, eu não quero o lugar de ninguém! Resisti também porque eu sabia que queriam me rotular de sambista por ser negra.”

“Hoje me sinto tão cantora quanto atriz”, diz ela, que dá uma palhinha antes de se despedir dos fãs. Quase todos os presentes na sala formam uma fila para abraçá-la e tirar fotos. “Queria dizer que a senhora é muito linda”, diz uma menina. “Esse ‘senhora’ é o que dói”, responde a atriz, rindo.

Já são quase 1h da manhã quando ela consegue terminar o encontro com os fãs e ir jantar em um restaurante nos Jardins. “Engraçado, eu não paro muito para pensar na velhice. Eu esqueço…”, diz, enquanto bebe um vinho branco. “Tenho plagiado a minha mãe, que tem 90 anos. Sempre que perguntam: ‘Dona Maria, a senhora não vai ficar velha?’, ela responde: ‘Não tenho tempo, menina!'”

Zezé fala bastante de Dona Maria. “Sabe como é mãe, né? Eu moro bem, mas ela sempre comenta que fulano tá bem de vida, sicrano tem um tríplex. Eu falo: ‘Fulano é contratado da Globo, mãe, eu não!”, diz ela, que vive no Leme, no Rio de Janeiro, em um apartamento que foi da escritora Clarice Lispector.

Mãe de cinco filhas adotivas, Zezé já teve cinco maridos e diz que hoje sofre muito menos por amor. “Estou solteira há muito tempo. Tenho romances, mas não consigo me imaginar casada de novo, morando com alguém. Ao mesmo tempo tenho medo de ficar sozinha. Os filhos a gente cria pro mundo, né?”

Aos 40, ela achava que pessoas mais velhas não tinham vida sexual. “Eu me lembro de quando minha mãe se casou pela última vez, aos 60 anos. Eu pensava que ela estava se casando para ter companhia para ir ao teatro, para não jantar sozinha. Se eu soubesse…”, diz, e solta uma gargalhada generosa.

“Percebi que estava errada no dia em que ela me pediu para não dar cerveja demais pro marido dela porque depois ele não dava conta. Falei: ‘gente, ela ainda transa!’ E hoje, com 71, vejo que é por aí mesmo”, diz, rindo e tomando mais um gole do vinho.

Mônica Bergamo

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