Após campanha contra assedio às mulheres, prefeito de Buenos Aires defende as cantadas e se arrepende

23 de abril, 2014

(El País, 23/04/2014) Uma polêmica começou na Argentina pelos elogios que muitos rapazes do país costumam lançar às mulheres nas ruas. Enquanto em lugares como Espanha as cantadas de rua e espontâneas à beleza feminina de modo geral saíram da moda, nas vias públicas da Argentina são frequentes e às vezes chegam a se tornar grosseiras. O assunto não merecia antes muito debate público, mas neste ano ganhou força porque uma organização não governamental, Acción Respeto, difundiu no último dia 7 com cartazes nas ruas e mensagens nas redes sociais uma campanha para a chamada Semana Internacional contra o Acoso Callejero (algo como Assédio de rua), que organiza a ONG Stop Street Harassment em todo mundo.

O prefeito de Buenos Aires, o conservador Mauricio Macri, se meteu na discussão e disse em uma entrevista de rádio nesta terça-feira: “No fundo, todas as mulheres gostam de cantadas. Aquelas que dizem que não, que se ofendem, não acredito nada. Porque não há nada mais lindo que te digam: ‘Que linda você é’. Por mais que te digam alguma grosseria, como ‘que lindo culo (bunda) você tem’. Está tudo bem”. Na Argentina, culo é uma palavra vulgar, algo equivalente a ‘rabo’ em português. O comentário de Macri, terceiro nas pesquisas para as eleições presidenciais de 2015, acordou o repúdio do Instituto Nacional contra a Discriminação do Governo da peronista Cristina Fernández de Kirchner.

A campanha iniciada há duas semanas tinha como alvo as cantadas ordinárias que desconhecidos soltam às argentinas quando caminham pela calçada. Vários cartazes as reproduziam: “Meteria no seu cu até que sangue”, “Como chuparia suas tetas, morena”, “Que rabinho, meu amor!”, “Loira, faço tudo com você”, “Se te agarro, te faço outro filho”, “Gatinha, com essas tetas me saem dentes de leite novos”, “Ai, linda, com essa boquinha…”. Após cada frase, a campanha dizia: “Se te incomoda ler isso, imagina escutar”.

Campanha contra o assédio verbal da artista Tatyana Fazlalizade. / EFE

Ao mesmo tempo, a Universidade Aberta Interamericana, de Buenos Aires, divulgou uma pesquisa que dizia que 72,4% das mulheres argentinas recebia recentemente ao caminhar pelas ruas algum assobio, grito ou palavra vulgar. De 72,4%, 59,2% confessou ter se sentido desconfortável, intimidada ou violentada, mas 76,2% reagiu em silêncio, 6,3% sorriu e 13,5% respondeu com um insulto. Além disso, 42,9% das interrogadas disse que sentia temor de caminhar sozinha pela rua e 56% que mudava de calçada antes de passar por um grupo de muitos homens.

Apenas 6,6% dos homens questionados reconheceu que pronunciava cantadas ofensivas nas ruas. Dessa minoria, 57,1% disse que as mulheres gostavam de escutá-los.

Opinião similar tinha até a terça-feira o prefeito de Buenos Aires, que chegou à política após uma carreira como empresário e presidente do Boca Juniors. “Quando perguntam às mulheres escandinavas ou às inglesas, o que elas mais gostam em relação aos italianos com quem convivem, e seria o mesmo na Argentina, já que somos parecidos com os italianos, é esta coisa de cantar, de olhar a mulher”, disse Macri à emissora FM Masters, da cidade de Ushuaia. “Se eu vejo uma mulher linda hoje, é possível que eu diga a ela uma cantada. A verdade é que não há nada mais lindo que a beleza da mulher, não? É quase a razão pela qual nós homens respiramos”, disse Macri, que aos 55 anos está em seu terceiro casamento e tem quatro filhos. Em 2009, EL PAÍS perguntou a ele se ele se parecia com o ex-primeiro ministro da Itália Silvio Berlusconi, que naquele tempo ainda não era condenado na justiça por fraude tributária, e Macri respondeu: “Para mim, faltam as garotas de 18 anos”.

O Governo de Cristina de Kirchner condenou os dizeres do prefeito. “Repudiamos que Macri diga que uma mulher goste quando a assediam na rua. Teria que pensar o que aconteceria se isso ocorresse a sua esposa ou filha”, disse o coordenador do Instituto Nacional contra a Discriminação, Pedro Mouratian. “As mulheres se sentem inseguras, violentadas quando são assediadas na rua. Em nosso país temos leis para prevenir este tipo de violência. Não me surpreende esta nova atitude do chefe de Governo da cidade, porque para o último Dia da Mulher a campanha feita pela prefeitura se baseou em uma imagem da mulher localizada só no âmbito doméstico, estereotipada, longe do lugar real que hoje ela ocupa”, acrescentou Mouratian.

Uma deputada da nova coalizão de centro-esquerda Frente Amplio Unen, Victoria Donda, somou-se ao repúdio que se propagou pelas redes sociais. “Ele gostaria que o tratassem como um objeto na rua… Tem que nos pedir desculpas porque, além disso, é um dirigente político que tem uma responsabilidade e precisa ser muito cuidadoso. Na Argentina, as mulheres ainda estão em uma situação de falta de proteção e desigualdade por parte do Estado. O problema é que do ‘algo lindo’ à grosseria há uma linha tênue, e isso foi, de fato, demonstrado por Macri”. Também questionou o prefeito por ele dizer que não acha que as mulheres se ofendam com as cantadas: “É a ideia de que as mulheres somos todas umas histéricas. Eu não tenho nenhuma visão clerical da vida, estou bastante longe disso. Mas é indispensável entender na Argentina que as mulheres devem ser tratadas como pessoas”. Donda apoiou em 2007 a chegada ao poder de uma mulher como Fernández, mas dois anos depois se distanciou dela. A luta contra a violência de gênero e a descriminalização do aborto foram duas das bandeiras da deputada, uma das que se opõe a uma eventual aliança da Frente Amplio Unen com a Propuesta Republica (PRÓ) de Macri para derrotar aos peronismos kirchnerista e opositor.

Assim como com outros de seus ditos e de suas políticas, e a diferença do estilo obstinado de Berlusconi, Macri acabou se arrependendo do que disse. Nesta quarta-feira, enviou uma mensagem pela rede social Twitter: “Uma das minhas filhas chamou minha atenção pelo tema da cantada, peço desculpas”.

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