Editorial da CCR – Comissão de Cidadania e Reprodução
Mídia: Erros na publicação e interpretação de dados sobre aborto, contracepção de emergência e Cytotec geram desinformação
Quando o aborto e outras temáticas do campo dos direitos sexuais e reprodutivos são assunto, as incorreções e equívocos publicados na imprensa não ajudam em nada o debate no Brasil. E a pílula contraceptiva de emergência vem batendo verdadeiros recordes no quesito desinformação, junto ao Cytotec, o misoprostol e à confusão na divulgação e interpretação de dados oficiais de pesquisas e estudos científicos e sociais na área da saúde reprodutiva e da mulher. A falta de cuidado na publicação de informações sobre o aborto legal e clandestino e sobre métodos contraceptivos pode custar o avanço da discussão, a educação da população e o acesso à saúde sexual e reprodutiva, entendida no âmbito dos direitos humanos. O acompanhamento da cobertura da imprensa neste campo é essencial para a garantia de uma abordagem justa e precisa sobre os temas.
Confusão
A matéria “Número de abortos legais cai 42% entre 2008 e 2009 – Ministério da Saúde atribui queda aos contraceptivos”, publicada no último dia 8 de fevereiro pelo Correio Braziliense na internet, é mais um exemplo da falha de articulação e despreparo de grande parte da mídia para lidar com o assunto desde em seus aspectos gerais, até os mais específicos. A reportagem faz uma miscelânea de dados do Ministério da Saúde sobre o número de abortos legais e curetagens realizadas pelo SUS, o uso de métodos contraceptivos e o Cytotec sem chegar a lugar algum. Ao contrário do que foi publicado na matéria, o que caiu foi o número de curetagens e AMIU (internações relacionadas ao aborto) e não o número de abortos legais. Este, segundo a coordenadora técnica da área da Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, Lena Peres, aumentou. A pílula contraceptiva de emergência não é abortiva e não tem relação alguma com o Cytotec. Colocá-los como métodos parelhos é um erro grosseiro.
Contracepção de emergência e misoprostol
Segundo manual direcionado aos profissionais de saúde como parte da série “Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos”, publicado em 2005 pelo Ministério da Saúde, a eficácia da AE (anticoncepção de emergência) é resultado de mecanismos de ação que, “em conjunto ou isoladamente, atuam impedindo a fecundação e sempre antes da implantação. Não há quaisquer evidências científicas de que a AE exerça efeitos após a fecundação ou que implique a eliminação precoce do embrião”. O manual diz ainda que “não há encontro entre os gametas masculino e feminino e, portanto, não ocorre a fecundação. A diminuição progressiva da efetividade da AE, conforme transcorre o tempo a partir da relação sexual, e a incapacidade de produzir sangramento imediato ou em caso de gravidez são demonstrações simples, mas evidentes, de que a AE é capaz de evitar a gravidez, nunca de interrompê-la”. De acordo com o caderno do MS, “a revisão das pesquisas científicas permite afirmar, sem reserva de dúvida, que a AE não atua após a fecundação e não impede a implantação, caso a fecundação ocorra” e “falsos conceitos científicos” levantaram a hipótese do efeito abortivo da pílula.
Já o Cytotec, proibido no Brasil, foi inicialmente comercializado como medicamento para o tratamento da úlcera estomacal, mas ficou famoso pelo seu uso abortivo. Apesar de proibido pela ANVISA, o Cytotec ainda é usado na realização de abortos clandestinos e o comércio ilegal do produto foi notícia inúmeras vezes. É preciso destacar, entretanto, que o uso gineco-obstétrico do misoprostol, substância ativa do Cytotec, não só é legal, no atendimento dos hospitais da rede cadastrada do SUS, como é recomendado para a realização do aborto medicamentoso. As restrições da ANVISA ao uso do misoprostol são, inclusive, motivo de muitas críticas por parte da comunidade médica e dos movimentos dos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil.
Foco político
Apesar da tradição da mídia de tratar temas relativos ao aborto nas páginas policiais, há cerca de dez anos o deslocamento do foco das reportagens para o embate entre os contra e pró-aborto marca o peso político das discussões e polêmicas geradas pelo debate no país. “A característica do tratamento dado pela imprensa é marcar o entrincheiramento das posições contra e a favor do aborto”, aponta o estudo “Olhar sobre a Mídia”, de 2002, da CCR – Comissão de Cidadania e Reprodução. Quase uma década depois, a imprensa ainda peca por não conseguir levar a abordagem para os âmbitos científico, social, da saúde e dos direitos humanos. É preciso maior interação sobre o campo dos direitos sexuais e reprodutivos por parte da imprensa, conhecer melhor sua literatura, que inclui pesquisas científicas, levantamentos, certos jargões e termos técnicos. Além de se procurar mais senso crítico e entendimento das problemáticas envolvidas no tratamento das questões, atenção com o que as fontes oficiais e paralelas dizem e interpretação cuidadosa das informações apuradas sobre o assunto, evitando os equívocos e a desinformação generalizada.