(O Globo, 10/06/2014) Uma inédita mobilização contra o preconceito marca a Copa 2014, antes mesmo de a bola rolar. Multiplicam-se as campanhas contra o racismo, numa escala a que nem a África do Sul de Nelson Mandela — onde o apartheid imperou por mais de quatro décadas — assistiu quatro anos atrás. Além da Fifa, a CBF, o governo federal e até o Estado do Rio criaram ações pregando igualdade. De olho na visibilidade do torneio, acompanhado por três bilhões de espectadores no planeta, a sociedade civil também se desdobra em iniciativas.
Na semana passada, um grupo de artistas brasileiros encheu o Teatro Carlos Gomes, no Centro do Rio, para o lançamento do videoclipe “Vem vencer”. No filme de seis minutos e meio, nomes como Chico Buarque, Gilberto Gil, Ivan Lins e Elza Soares dão voz à composição dos parceiros Mombaça e Mu Chebabi.
O formato lembra históricas gravações solidárias dos anos 1980. Ninguém esquece de “We are the world”, que cantores estrangeiros gravaram em prol da Etiópia, e “Chega de mágoa”, de artistas brasileiros para os flagelados da seca do Nordeste. Na versão século XXI, a letra-manifesto convoca os brasileiros a vencerem preconceitos “de raça, de cor, imundos”. A Sony Music encampou a iniciativa e vai lançar mundialmente clipe e single nesta sexta, com direito a ringtones de celular, conta Mombaça, idealizador da campanha.
Neymar e Marta, engajados
Em São Paulo, hoje, três ONGs ligadas aos direitos humanos apresentam a campanha “Linha de frente”. São vídeos com histórias de 11 brasileiros que vivem sob ameaça, por defenderem indígenas, vítimas da violência policial, LGBTs, quilombolas. Justiça Global, Terra de Direitos e Front Line Defenders querem aproveitar a Copa para denunciar violações no país.
Neymar, camisa 10 da seleção de Felipão, e Marta, cinco vezes ganhadora do prêmio de melhor jogadora do mundo da Fifa, participaram do vídeo “Proud to play” (algo como “Orgulho de jogar”), contra a homofobia nos esportes. Gravaram mensagens em português pela igualdade. O vídeo de dois minutos, em poucos dias, bateu 4,4 milhões de visualizações no YouTube.
Foram as sucessivas manifestações racistas em estádios europeus e sul-americanos (Brasil, inclusive) nos meses que antecederam o Mundial o estopim das campanhas antidiscriminação. O pontapé inicial foi o #somostodosmacacos, que Neymar divulgou no Twitter junto com uma foto dele e do filho, Davi Lucca, segurando bananas.
A campanha viral, detonada depois que Daniel Alves, jogador da seleção e do Barcelona, comeu uma banana atirada em campo por um torcedor do espanhol Villarreal, contaminou jogadores e celebridades mundo afora. Mas perdeu força com críticas de ativistas à associação dos negros com macacos, ofensa que atravessa gerações.
Na estreia do Brasileirão, a CBF apresentou filme e marca da ação “Somos iguais”, que condena toda forma de preconceito. Tinga, do Cruzeiro, e Arouca, do Santos, abrem o vídeo. O primeiro ouviu ofensas racistas, em fevereiro, no jogo contra o Real Garcilaso, do Peru, pela Libertadores da América. Arouca foi chamado de macaco pela torcida do Mogi Mirim, pelo Campeonato Paulista 2014.
O árbitro Márcio Chagas da Silva, após uma partida de Esportivo e Veranópolis pelo título gaúcho, em março, encontrou o carro danificado e com bananas. Antes disso, durante o jogo, fora xingado de macaco. O Veranópolis, punido pelo Tribunal de Justiça Desportiva do Rio Grande do Sul, acabou rebaixado para a segunda divisão local.
‘Say no to racism’, pede Fifa
A Fifa levou para as redes sociais a ação “Say no to racism” (“Diga não ao racismo”), aquela que costuma entrar em campo com os jogadores de seleções em partidas oficiais. A campanha existe desde 2002. Agora, atletas, árbitros, celebridades e internautas estão sendo convidados a postar fotos com a frase.
Nos últimos dias, a entidade divulgou pelo Twitter imagens de Dante, David Luiz, Neymar e Zico, ídolo maior do Flamengo. O artista plástico Romero Britto está no cartaz da ação. As fotos serão exibidas em estádios, nos jogos das quartas de final da Copa 2014.
A entidade também promete medidas mais severas contra manifestações de racismo nas arenas de futebol. No ano passado, Jeffrey Webb foi nomeado presidente da Força-tarefa da Fifa contra a Discriminação. Do último congresso, saiu resolução que prevê novas sanções aos clubes envolvidos em episódios de discriminação racial. As punições irão da perda de pontos à expulsão de competições e ao rebaixamento.
Torcidas organizadas também convocadas
O governo brasileiro pôs no ar anúncio da campanha “Copa sem racismo”. O filme, com imagens de torcedores de diferentes tons de pele, ensina que “quem ama o futebol não tolera discriminação”. A presidente Dilma Rousseff também tem se manifestado nas redes sociais sobre o assunto e chegou ao pedir ao papa Francisco uma mensagem pela paz e contra o preconceito para ser exibida durante o Mundial.
Até mesmo torcidas organizadas de Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco foram convocadas para ações contra manifestações racistas nos estádios de futebol. Na sexta-feira passada, por exemplo, uma audiência pública na Alerj reuniu torcedores, ex-jogadores, o defensor público Francisco Horta e o deputado estadual Carlos Minc. Desse encontro, saiu a campanha “Cartão vermelho para o racismo”.
Também no Rio de Janeiro, a Secretaria estadual de Assistência Social põe na rua amanhã a iniciativa “Discriminação é gol contra”. Haverá distribuição de material informativo e educativo para combater racismo, homofobia, intolerância religiosa, xenofobia e discriminação de gênero. Uma cartilha ensinará a cidadãos e turistas que há leis vigentes, que proíbem e punem o preconceito. A maior delas é a Constituição Brasileira.
No Brasil, o racismo é crime inafiançável e imprescritível, desde 1989. Mas faltam condenações. É quase impossível punir as ocorrências nos estádios, porque injúria racial é crime de responsabilidade individualizada. Os agressores se escondem na multidão. Como falta empenho de dirigentes e autoridades em identificá-los, inquéritos e processos judiciais não prosperam.
É a prova de que campanhas que apelam à consciência e à boa vontade de torcedores são bem-vindas. Mas a mudança de comportamento só virá quando os agressores sofrerem punições e clubes e entidades, responsabilizados.
Casos de racismo que envegonham
Atos de racismo, infelizmente, não são raros nos estádios de futebol. Mas foi com elegância e bom humor que o lateral-direito Daniel Alves reagiu, em abril passado, a um deles, quando o Barcelona buscava o gol da virada contra o Villareal: comeu a banana atirada no gramado por um torcedor.
Apesar da grande repercussão do caso, poucos dias depois, mais um episódio de racismo ocorreu. Desta vez, na Itália. Na derrota do Milan para o Atalanta, em Bérgamo, um torcedor atirou uma banana na direção do zagueiro francês Kevin Constant, do time milanês. O árbitro da partida registrou o episódio na súmula.
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