(Correio Braziliense, 26/07/2014) Decidir que a vida só tem sentido se houver liberdade. Descobrir que a escravidão pode vir embrulhada em papel de presente. Saber que o rompimento e a construção de uma vida nova envolvem coragem e escolhas. Foi mais ou menos assim que Jurema começou a contar a sua história. Sentada meio sem jeito na cadeira de espaldar alto, a mulher de aspecto sofrido e rosto magro, a pele sem viço, os cabelos soltos, parecia um animal acuado. Viu o juiz cochichar alguma coisa com o promotor e ambos rirem. Pensou se não estariam comentando o fato de ela ser uma Prostituta. Teve vontade de sair dali correndo, fugir, mas era tarde demais.
As imagens vieram à sua mente como em um filme. Lembrou-se de quando conheceu Lorenzo, um italiano alto, bonito, falante, que chegou em sua pequena cidade, no interior de Goiás, com muitas promessas. Procurava moças para trabalhar na Europa, com garantia de salário bom e benefícios. Quando pôs os olhos em Jurema, uma mulata de corpo roliço e sorriso brejeiro, fez-se de apaixonado, prometeu-lhe casamento. Encarregou-a de conseguir outras moças. Ela cumpriu o combinado, trabalhou por ele e para ele, até que a ficha caiu. Mas nessa altura, já estava completamente envolvida em uma complexa rede de exploração do tráfico de pessoas.
A história de Jurema e de outras mulheres cooptadas para o tráfico e o trabalho no estrangeiro não é nenhuma novidade e tem se tornado recorrente, com poucas variações. Nem todas as vítimas desse crime têm ciência de que o convite que recebem objetiva a exploração sexual. Partem para o exterior na convicção de que exercerão atividades lícitas. Mesmo as que sabem, ou desconfiam, desconhecem a situação de encarceramento e abuso que viverão lá fora. Sofrem preconceito, discriminação e violência por parte dos clientes e dos donos dos estabelecimentos em que se realizam os encontros. Exercem a Prostituição por várias horas, sem segurança e higiene e são estimuladas a usar drogas e álcool para ficarem despertas. Têm que lidar com constantes ameaças e intimidações por todo o período que permanecem sob escravidão sexual. Muitas se matam. Outras são assassinadas.
Há pelo menos dois pontos, essenciais à efetiva repressão ao tráfico de mulheres, que necessitam da atenção das autoridades. O primeiro diz respeito ao preconceito. Não se pode fazer vista grossa para o fato de que, mesmo entre aqueles encarregados de reprimir e punir esse crime, há quem veja as vítimas como responsáveis pela própria sorte, pelo caminho que escolheram. Esquecem-se de que ninguém, a menos que padeça de algum masoquismo patológico, aceita realizar, por vontade própria, qualquer atividade em regime de escravidão. A revitimização é outro dos aspectos do preconceito. Ao ser submetida a repetidos interrogatórios, em que a sua situação de Prostituição e os abusos que sofreu são reforçados, renova-se a violência.
O segundo refere-se ao processo. A apuração desses crimes não tem sido nem rápida nem eficaz. Uma vez que a vítima tenha revelado a existência de situação configuradora de tráfico de pessoas, a autoridade policial deve imediatamente proceder à colheita das provas, evitando que o decurso do tempo pese contra a investigação. Essas provas, no entanto, não raro, encontram-se no estrangeiro, pelo que é necessário o reforço dos mecanismos de cooperação judicial internacional para o auxílio à recolha desses elementos lá fora. Muitos juízes e promotores ainda não sabem como utilizar essas ferramentas.
Imprescindível, portanto, estabelecer-se formas de proteção às vítimas e testemunhas, para que possam, sem receio, levar os fatos ao conhecimento das autoridades e terem segurança para denunciar os responsáveis. Essencial, também, capacitar-se policiais, promotores e juízes para a correta apuração e punição desses crimes. Sem provas, por mais convincente que seja a palavra daquelas que sofreram a violência, o resultado do processo será a absolvição.
Hoje em dia, o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual movimenta milhões e ocupa o terceiro lugar entre as atividades ilícitas mais lucrativas em todo o mundo. Somente perde para o tráfico de armas e de drogas. Não há, no entanto, estatísticas confiáveis sobre o número de mulheres traficadas no Brasil para essa finalidade, embora os dados indiquem ser o país o que possui o maior número de casos na América do Sul. Essa constatação, por si só, gera péssima reputação para a imagem do país lá fora e traz a desconfortável sensação de impunidade, aqui dentro.
*Desembargadora federal 2014 TRF 1ª Região
Acesse o PDF: Tráfico de mulheres, por Mônica Sifuentes (Correio Braziliense, 26/07/2014)