(O Estado de S.Paulo, 10/08/2014) “Assédio no transporte público é um problema mundial. O vagão rosa é uma alternativa, se aliado a políticas de educação”, diz historiadora
São Paulo, Estação República, 18h. Entre um empurrão e outro no trajeto, um beliscão não inocente, um deslize atrevido, brusco e impróprio, uma “encoxada” inesperada no corpo alheio. A mão maliciosa tem nome: assédio sexual, que vem se repetindo nos vagões da capital paulista e de outras metrópoles mundo afora.
No dia 7 de julho, a Assembleia Legislativa aprovou o “vagão rosa”, para uso exclusivo das mulheres no Metrô e na CPTM.
Muitas feministas se manifestaram contra o projeto, por considerá-lo segregador.
Dias antes da decisão de Geraldo Alckmin sobre a matéria, prevista para o dia 13 de agosto, a discussão volta aos trilhos.
“O vagão rosa é uma alternativa para aquelas que se sintam mais visadas, mas é preciso uma política de educação, como vem sendo feito nos países desenvolvidos”, considera a historiadora Mary del Priore. “O assédio a mulheres nos transportes públicos é mundial. Do Japão à Tunísia, da Bélgica ao Egito, da França ao Brasil, países com cultura e educação diferentes enfrentam o problema.” Pós-doutora pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Mary del Priore assina mais de 30 livros – entre eles, História das mulheres no Brasil (Contexto, 1997), vencedor do Prêmio Jabuti, e Histórias e Conversas de mulher (Planeta, 2013). Nesta entrevista, a escritora transita do século 18 ao 21, de Beauvoir a Beyoncé, de Tóquio a São Paulo, para discutir a condição feminina atual. “O feminismo hoje é globalizado, meio punk, meio pop”, diz. Se é feminista? “Se significa lutar por direitos e deveres iguais, por igualdade entre os sexos, sim, sou feminista.”
A discussão sobre o vagão exclusivo voltou à baila com a possibilidade de sua instalação nos metrôs de São Paulo. O vagão “rosa” é segregador? Ou é uma alternativa viável? O assédio a mulheres nos transportes públicos é mundial. Do Japão (onde foi criado o primeiro vagão rosa) à Tunísia, da Bélgica ao Egito, da França ao Brasil, países com culturas e níveis de educação diferentes enfrentam o problema. As medidas coercitivas vão da pena pecuniária elevada, na França ou no Japão, a folhetos preventivos distribuídos por imãs nas mesquitas egípcias. Nos EUA e Inglaterra, associações lançaram campanhas de sensibilização.
Na França e Bélgica, grupos de mulheres optaram por filmar e divulgar as agressões e os agressores na internet. As penalidades, porém, têm se revelado inócuas: no Japão, onde o assédio sexual é punido pelo artigo 176 do Código Penal, 60% das mulheres sofreram algum tipo de toque impróprio no transporte público. O vagão rosa é uma alternativa para aquelas que se sintam mais visadas, mas é preciso que haja uma política de educação, como já vem sendo feito nos países desenvolvidos.
Na Turquia, milhares de mulheres usaram o sorriso como “protesto” – após um político pedir que não sorrissem em lugares públicos para não atrair olhares. Não lembra a ideia de que mulheres “merecem” ser estupradas (como foi discutido no Brasil tempos atrás)? Países de tradição patriarcal viam no “olhar baixo e boca fechada” a imagem da mulher submissa e, portanto, ideal. No Brasil do século 18 não foi diferente. Nos arquivos da cúria de São Paulo, um processo de divórcio descreve o caso de uma esposa acusada de adultério, entre outras razões, por não manter os “olhos baixos”. A ideia de que mulheres vestidas inadequadamente sejam um convite ao estupro também é antiga. Na mentalidade patriarcal, o desnudamento está associado a sexo fácil. Na República Velha, o Código Civil distinguia “honestas” e “desonestas”: “(…) Tímidas, ingênuas, incautas foram vítimas de atentados contra a sua honra. Mas há outras, corrompidas e ambiciosas, que procuram (…) especular com a fortuna ou a posição social do homem, atribuindo-lhe a responsabilidade de uma sedução que não existiu, porque elas propositadamente a provocaram (…)”, gravou o jurista Viveiros de Castro. Até meados do século 20, prostitutas se ofereciam seminuas nas janelas, enquanto as “certinhas” se cobriam até a cabeça. O binômio entre a mulher para casar, difícil, e a outra, fácil, sempre esteve presente. Ainda hoje existe um movimento diferenciando princesas e “cachorras”.
Pela longa duração dessa forma de pensar, a mentalidade patriarcal é algo que se colou a nossa pele. É difícil arrancá la na base do grito. Só com educação.
Na Índia, o estupro coletivo se tornou risco quase cotidiano. No Brasil, uma garota foi estuprada por dez jovens no dia 1˚. Há uma “cultura do estupro” que perpassa países? As mulheres estão sempre vulneráveis? No passado, acreditava-se que uma mulher, se atacada por um único homem, seria capaz de se defender. E, para se tornar uma vítima, era preciso diversos depoimentos registrando seu comportamento impecável.
Julgavam-se mais as violências físicas feitas contra ela do que a sexual. As condenações eram leves e as mulheres saíam marcadas moralmente pelo acontecido.
No século 19, a preocupação jurídica com o “atentado ao pudor” ajudou as vítimas, que ainda assim tinham que provar reputação ilibada. A criação de mecanismos que apoiam a vítima multiplicou as denúncias de estupro. No século 21, existe uma enorme preocupação com o sofrimento não mais moral, mas psíquico das mulheres.
Na quinta, o MP lançou campanha para incluir o feminicídio no Código Penal. Que balanço é possível fazer sobre os avanços no combate à Violência Contra a mulher? Acredito que a multiplicação de delegacias de mulheres e a Lei Maria da Penha têm tido papel fundamental. O alto número de mulheres no Judiciário também ajudou a causa. Mas é bom lembrar as violências que as mulheres cometem entre elas, contra crianças, contra idosos e, por que não?, contra os homens. No livro História dos Homens no Brasil (2013), mostro como na Europa já se relativiza a vitimização das mulheres.
Na Finlândia, desde 2007 foi implantada uma política de integração de homens na realização da igualdade entre os sexos. Multiplicam-se organizações de proteção aos maridos e pais nos divórcios. Organizam- se congressos em que se discute a defesa das vítimas, homens, contra seus algozes, mulheres. É preciso lembrar que mulheres são atores históricos, providos de vontade – e transformá-las em “vítimas” permanentes não fará a sociedade avançar.
As mulheres são o sexo frágil? Essa é outra crença herdada de nossos antepassados.
Desde a Antiguidade e de Aristóteles, a diferença entre sexos era descrita por oposições: homens teriam ossos fortes, carnes musculosas, sangue quente, enfim, seriam criaturas solares; mulheres, ossos frágeis, carnes tenras e seu ciclo lunar, seriam frias. O século 19 acentuou essas diferenças: de um lado, a barba e o bigode masculinos; de outro, a figura prisioneira do espartilho de mulheres “frágeis”, endeusadas pelo romantismo. Nos anos 80, os estudos de gênero passaram a definir as diferenças como culturalmente construídas.
Nos 90, as trabalhadoras começaram a substituir a temática das desigualdades pela das identidades. A construção de si e o desenvolvimento pessoal tornaram-se prioridade. As mulheres começaram a recusar identidades importadas, preferindo investir na própria diferença. Mais do que se identificar aos valores masculinos, elas ressaltaram o que tinham de diferente. O feminismo do século 21, na sua versão “girl power”, com Sheryl Sandberg como musa, procura mostrar que as mulheres já têm papéis antes considerados masculinos – e não devem se envergonhar disso.
Discussões sobre a feminilidade atual ocuparam mídias sociais, na linha “a incrível” geração de mulheres… Essa discussão não deveria estar ultrapassada? No século 21, as mulheres não podem exercer os papéis que bem quiserem, dentro e fora de casa? Elas já o fazem. As mulheres enfrentam reações e resistências, mas são maioria na população e, mais educadas, estão gradativamente ocupando várias áreas profissionais.
Elas lutam contra a herança das gerações anteriores, que tinham papéis muito definidos para o sexo. O crescimento de mulheres no mercado de trabalho, o progresso científico e a contracepção, a liberalização dos costumes e o divórcio, mudaram definitivamente o casamento e a família.
Os valores se transformaram. Foi-se o tempo em que cada um dos membros da família endossava um papel social fixo: esfera pública para o marido; esfera privada para a mulher, ocupando-se de tarefas domésticas, da educação dos filhos e da submissão desses à autoridade paterna.
Mas as mulheres são machistas? Profundamente. Tive oportunidade de mostrar a construção do machismo da mulher brasileira no livro Histórias Íntimas (2010). Apesar da proclamada igualdade – elegemos uma presidenta! -, vivemos uma longa tradição machista. E, de modo curioso, nós a alimentamos. Estudiosos de revistas femininas, músicas e imagens publicitárias demonstram que uma “mulher livre” não é, absolutamente, aquela que faz escolhas – e sim a que se conforma aos modelos da mídia; que só se vê através dos olhos do homem. As leis mudam, mas o essencial continua intocado: mulheres continuam a educar filhos e tratar dos maridos, reforçando a ideia de superioridade do sexo masculino. Em casa, elas devem agradá los.
Gostam de ser chamadas do que for comestível, tipo “gostosa” e “docinho”. mulher inteligente? “Sapatona”. mulher fruta? “Linda”.
Palavrões e pancadas? Há quem pense que tal forma de demonstrar ciúmes é “boa”; que Nelson Rodrigues estava certo quando disse que “mulher gosta é de apanhar”.
A jornalista Carmen da Silva dizia que esse conformismo era uma maneira de enganar a si própria, que a brasileira abrigava em seu íntimo um conflito de identidade que brigava com a realidade. Queria ser boazinha ou não, conforme a circunstância; doce ou áspera, segundo o impulso do momento; forte ou fraca, dependendo da situação; bonita ou desleixada, de acordo com o ânimo. Na verdade, sim: ela gostaria de se livrar de imagens de “mulher perfeita”, submissa, para começar a “ser”.
Arnaldo Jabor escreveu dias atrás: “Nosso feminismo resultou na revolução das periguetes. No Brasil das celebridades, o feminismo foi um mal-entendido”. Concordo em parte, pois isso nos é dado a ver, pela própria imprensa. A vulgaridade é uma das marcas registradas da cultura visível, que está nas novelas, nas revistas. Que nos é empurrada, casa adentro, pela mídia.
Mas há uma parte subterrânea em que as revoluções, discretas, porém consistentes, estão se realizando. Em todo o Brasil, um número importante de mulheres lidera movimentos comunitários e coletivos, pesquisa sobre saúde, investe na educação dos que estão próximos. São anônimas, mas são elas que fazem a diferença. Não é com as periguetes, mas com essas heroínas invisíveis do cotidiano que o Brasil irá mudar.
O que marca o feminismo atual? O feminismo hoje é plural. Estamos longe dos anos 70 e 80, com movimentos concentrados em estudos acadêmicos ou lutas políticas. O feminismo é globalizado e meio punk, meio pop. Caminha lado a lado com inúmeras causas: trabalhadoras, transexuais, executivas, lésbicas – a agenda é variadíssima. É feito e alimentado por mulheres criativas que se sentem autorizadas a usar o termo “feminismo”, sem militância ou ligação a um coletivo específico.
O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir não é mais obrigatório, discutir se axilas devem ser raspadas ou não, se Beyoncé é feminista ou não, tudo cabe nesse novo movimento. feministas digitais questionam identidades e normas estéticas.
Outro grupo usa a sexualidade como forma de reapropriação de si, como Virginie Despentes ou Wendy Delorme. Homens feministas como ThomasMathieu e o Project Crocodiles participam do debate. Há coletivos masculinos, como o francês Zér oMacho, que lutam, lado a lado, com as mulheres contra o machismo. O feminismo hoje corresponde a diversos grupos em diversas culturas. Gosto da ideia da americana Carol Gilligan, de que devemos acentuar nossas diferenças de gênero para construir, junto com os homens, uma sociedade na qual o cuidado com o outro esteja presente em nossas práticas cotidianas.
Caminhamos para um pós-feminismo no qual a ideia de cuidar, combinar, associar, tornou-se um valor ético e universal, pois homens e mulheres não podem viver uns sem os outros. Cuidar implica dar atenções, tratar, ter cuidados, afeiçoar-se, dedicar-se, enfim, amar. Além de cuidar dos outros, seria importante o cuidar de si. Da própria cabeça e do coração.
Juliana Sayuri
Acesse o PDF: Essa tal feminilidade (O Estado de S.Paulo, 10/08/2014)