(G1, 23/08/2014) Casos de estupro e violência sexual dentro da universidade, como a denúncia de uma aluna da medicina da Universidade de São Paulo (USP) em 2011, são mais comuns em três momentos, segundo a antropóloga Heloisa Buarque de Almeida, coordenadora do programa USP Diversidade: nos trotes universitários, quando calouras e calouros são submetidos a atividades definidas por veteranos, nas festas das faculdades e dentro das residências estudantis. Para melhorar o atendimento da universidade às vítimas, o programa, que integra o Núcleo de Direitos da USP, estuda formas de padronizar o acolhimento e a investigação das denúncias de todos os tipos de violência e discriminação, treinar funcionários da segurança e fazer uma pesquisa com a comunidade uspiana para mapear os casos de violações de direitos.
Heloisa é professora da área de estudos de gênero na antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), e começou a pesquisar a questão do estupro na universidade depois de ter sido abordada por coletivos feministas na faculdade. “O que é muito comum é aquela situação da menina que bebe demais, está inconsciente, e os colegas mesmo abusam dela. Mais comum não é ser funcionário, é colega, e isso é mais assustador”, explicou ela ao G1.
O caso da aluna da medicina, que neste mês voltou à tona depois da decisão da delegada que apura o inquérito de indiciar o acusado, ocorreu em uma festa promovida por alunos de medicina. O suspeito é um homem que, de acordo com a delegada, trabalhava com manutenção de ar-condicionado na faculdade.
Mas esse ainda é um dos poucos casos que são registrados na polícia ou na própria Ouvidoria da USP. Heloisa afirma que, embora a multiplicação de coletivos feministas dentro da USP tenha aumentado também o número de pessoas relatando casos de estupro e violência, poucos são levados às instâncias oficiais porque as vítimas têm medo e existe um sentimento de impunidade. Só na USP, Heloisa diz ter sido informada indiretamente de pelo menos 20 casos de estupro ou violência física cometidos por alunos contra alunas nos últimos anos, e só quatro deles fora dos campi.
Ela lembra que o problema não está isolado na USP e diz ter descoberto “fofocas” sobre casos em Santa Catarina, Bahia, Ouro Preto, entre outros. “É fofoca. Mas é fofoca reveladora de alguma coisa que está acontecendo, porque ninguém inventa uma coisa dessas.”
Na Universidade de São Paulo, a investigação dessas denúncias é responsabilidade de cada faculdade. “Depende da posição dos diretores, depende da posição dos professores mais poderosos, os professores titulares. Tem diretor que é pessoa completamente envolvida com direitos humanos, faz comissão de sindicância, ouve as partes. E em algumas unidades os diretores não querem que esses casos sejam apurados”, afirma a antropóloga.
Protocolo de atendimento
A professora Lúcia Vilela Leite Filgueiras, coordenadora do Núcleo de Direitos, ligado à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão, diz que o órgão institucional foi criado há dois anos para centralizar e fortalecer diferentes projetos de direitos humanos da universidade, como o de serviços para a terceira idade, atendimento a deficientes físicos, incentivo à economia solidária, a relação com comunidades do entorno e o respeito à diversidade.
Uma das funções do órgão, segundo ela, é tentar elaborar um protocolo comum de ação para as unidades e serviços. “O núcleo serve para articular a universidade. Se tem questões desse tipo, ele tenta ser alguém que faz o meio de campo dos vários órgãos da universidade para tentar resolver. Estamos pensando qual é o protocolo, como a Ouvidoria tem que se comportar. Esse tipo de debate a gente conduz para a universidade achar o seu caminho”, diz.
Atualmente, o órgão que também pode receber denúncias é a Ouvidoria da USP, mas a dificuldade de acolhimento encontrada pelas vítimas muitas vezes faz com que elas desistam de perseguir a punição dos autores. “Esses casos não estão chegando para a ouvidora, porque em outros momentos foram denunciados para a Ouvidoria e ela não conseguiu proteger as pessoas que denunciaram.”
A USP tem ainda uma Superintendência de Assistência Social (SAS) para oferecer auxílio de vários tipos aos estudantes da universidade. O G1 procurou a SAS para saber quantos casos de estupro foram atendidos nos últimos anos e qual é o procedimento padrão indicado para as vítimas, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.
Propostas para investigar estupros
O USP Diversidade e o Núcleo de Direitos da USP não têm poder de determinar políticas, apenas de educar e sugerir mudanças. Uma das ideias ainda embrionárias é estudar a criação de um comitê que centralize a investigação dos casos, mas a execução dessa mudança depende de uma alteração no regimento interno da USP. Mas, para a professora Heloisa, essa pode ser uma solução para que as pessoas vítimas de violações de direitos se sintam mais confortáveis para denunciar os casos.
Outras propostas são treinar os funcionários da Guarda Universitária sobre como lidar com situações que envolvem os direitos humanos e criar um programa de atendimento às vítimas de estupro dentro do Hospital Universitário, nos moldes do que já acontece no Hospital Peróla Byington, no Centro de São Paulo. Lá, as mulheres passam por exames, recebem tratamentos antiretrovirais e de prevenção à gravidez e ainda têm assistência psicológica.
Heloisa diz que os coletivos feministas são, ainda que informalmente, os espaços que mais têm ajudado as meninas a entenderem que não têm culpa nesse tipo de caso. “O que acontece é que, normalmente, a menina se sente culpada porque pensa: ‘fui eu que bebi demais’. Ela sente vergonha e não conta. Mas agora elas estão percebendo que não é porque beberam demais que os meninos podem abusar delas. E que não precisa espancar para ser estupro.”
Além da conscientização das vítimas, porém, a professora de antropologia diz que ainda é preciso mudar a estrutura oficial de acolhimento e apuração dessas denúncias, principalmente a desigualdade com que elas são tratadas nas diferentes unidades da USP. “Todas as escolas mais tradicionais, que são muito renomadas e de profissões de prestígio, têm clima em que acham que têm que proteger a faculdade. Dizem que não podem denunciar porque é ruim para o nome da escola. Mas o que é ruim para o nome da escola é não denunciar, é não apurar, é não punir.”
Ana Carolina Moreno
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