(Folha de S.Paulo, 02/09/2014) Quarenta anos após ter iniciado sua carreira de jornalista como um militante pró-independência infiltrado num diário português de Moçambique, o escritor Mia Couto, 59, volta ao campo da investigação da realidade para montar seu novo romance.
Trata-se de uma ficção baseada na vida de Ngungunhane (1850-1906), último monarca de um império africano que resistiu à dominação portuguesa.
Por telefone, Couto conta à Folha como os anos em que participou da Frente de Libertação de Moçambique, nos anos 70, e atuando em meios de imprensa locais, como o jornal “Notícias”, o formaram como novelista.
“Eu sempre amei o jornalismo e esse contato privilegiado com a realidade. Mas me cansei de algumas coisas”, conta ele.
“Não aguentava cargos de chefia e, quando me enviavam a outra cidade para uma cobertura, sempre achava que precisava de mais tempo para entender o novo lugar em que estava. Como não podia ligar para meu editor e dizer que só mandaria o texto dali a duas semanas, resolvi desistir”, diz.
Couto fala nesta quarta (3), em São Paulo, no evento Fronteiras do Pensamento (Teatro Cetip – Complexo Ohtake Cultural), às 20h30, com ingressos esgotados.
Sobre o novo livro, Couto diz que se sentiu desafiado a lidar com as diferentes interpretações que se fazem de Ngungunhane.
“Quando foi aprisionado, já estava muito debilitado. Mas os portugueses mesmo assim o celebraram como um importante inimigo vencido, obviamente para engrandecer sua conquista. Já os moçambicanos o reconstruíram de modo exagerado como mártir”, diz.
“Portanto, de alguma forma, as duas interpretações são ficcionais. E essa releitura, que a história faz sempre, com os olhos do presente, era o que mais me interessava investigar.”
O escritor é comumente comparado, no Brasil, a Guimarães Rosa (1908-1967) pelo uso do léxico do interior do país em sua obra. “Eu e minha geração buscamos no interior de Moçambique mais do que uma nova linguagem ou uma nova forma de tratar a língua portuguesa”, diz.
“Tratava-se de um compromisso de inserir aquela realidade na linguagem. Também correspondia a uma ideia de negar a homogeneidade que se buscava dar com a modernidade, mostrando um país complexo cheio de vozes e realidades diferentes.”
Couto, já bastante conhecido no Brasil entre os escritores de língua portuguesa contemporâneos, diz que faltam iniciativas para conectar ainda mais a literatura lusófona.
“Esse intercâmbio que passou a haver nos últimos anos é bem menor do que nos anos 60 e 70, quando havia regimes autoritários de ambos os lados que uniam os intelectuais”, explica.
Hoje, lamenta, Moçambique vive forte influência da televisão brasileira. “Não gosto do modo como o Brasil é mostrado lá, as pessoas ficam com uma sensação equivocada, de que é um mundo de pessoas ricas e brancas, principalmente veiculado pelas telenovelas.”
“Quando chegamos aqui há um choque, porque a realidade é mais complexa e veem-se as injustiças”, completa.
Apelido ‘Mia’ veio de paixão pelos gatos
Nascido António Emílio Leite Couto, o escritor Mia Couto conta que está acostumado a ser chamado de Mia desde pequeno. O apelido foi dado por seus pais.
Durante a infância, eles costumavam deixar, na varanda de casa, alimentos para os gatos da rua. Era o lugar preferido do escritor, que passava ali horas brincando com os felinos.
“Meus pais não só eram muito compreensivos com relação ao meu comportamento, como me deram esse apelido que, agora, já é meu nome”, diz, rindo.
Sylvia Colombo
Acesse em pdf: Vida de monarca africano inspira livro de Mia Couto (Folha de S.Paulo, 02/09/2014)